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Marcas e memórias:
Almir Mavignier e o Ateliê de Pintura de Engenho de Dentro Lucia Reily, José Otávio Pompeu e Silva e colaboradores Introdução
Almir Mavignier e o Ateliê de Pintura de Engenho de Dentro
José Otávio Pompeu e Silva
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Periferia do Rio de Janeiro, ano de 1946: nesse período de pós-guerra, o Brasil experimentava uma onda democrática. Um jovem funcionário de um hospício apresentou-se para a psiquiatra Nise da Silveira, que tinha sido reintegrada ao serviço público após quase uma década depois do período em que ficou presa e permaneceu escondida no interior da Bahia, com medo da perseguição política. O jovem de origem humilde queria seguir a carreira artística e propôs fundar um ateliê de pintura para os internos do hospício.
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O nome desse jovem: Almir Mavignier. No catálogo Mavignier 75 (Mavignier, 2000), o artista conta que nasceu no dia 1 de maio de 1925 no Rio de Janeiro e, na época, a família residia na rua Souza Cruz, no bairro da Tijuca. Filho de Margarida da Silva Mavignier, de origem maranhense, e Melchizedeck Eliezer Mavignier, paraibano, capitão de navio cargueiro do Lloyd Brasileiro (Amaral, 2000), Almir era o filho caçula. Seus irmãos eram Walter (advogado), Delmar (médico), Gladys (que fez curso em escola Normal) e Nilton (funcionário público) – como se pode notar, os pais se empenharam na formação dos cinco filhos. Almir Mavignier fez o curso ginasial no Colégio Vera Cruz e o curso científico no Colégio Rabello, no Rio de Janeiro. Depois do serviço militar obrigatório, prestou concurso para trabalhar no Banco do Brasil; também prestou vestibular para arquitetura, mas não obteve sucesso nesses dois obje-tivos (Amaral, 2000). Em 1945, conseguiu um emprego no Departamento Nacional do Café, como datilógrafo, mas mostrou-se pouco afeito a essa atividade. Os concursos públicos e os empregos burocráticos não eram a meta do jovem que já havia definido desde a adolescência que sua vocação era a arte, e ser artista era o objetivo que perseguia (Figura 3.1).
Em vários depoimentos, Mavignier afirma que não fora autodidata. Seu primeiro curso formal nessa área foi de desenho com modelo vivo, na Associação Brasileira de Desenho. A partir de 1946, estudou com Arpad Szenes, Axl Leskoschek e Henrique Boese, três professores europeus no Brasil. Foi nesse contexto de cursos e aulas de desenho e pintura que conheceu Ivan Serpa e também Ubi Bava (Amaral, 2000). Já Abraham Palatnik foi apresentado a Mavignier por Renina Katz alguns anos depois, quando a família de Palatnik voltou ao Brasil após viver de 1932 a 1947 em Tel-Aviv, Israel. Recém-chegado, Palatnik começou a participar de mostras coletivas, expondo suas telas e conhecendo assim uma geração de jovens artistas brasileiros (Osório, 2000). Mavignier, Serpa e Palatnik foram muito próximos e estabeleceram laços de grande amizade nessa época, que foi o período formativo dos três no universo das artes plásticas. Sobre o início do ateliê de pintura do Centro Psiquiátrico Nacional, Mavignier relata que trabalhava na parte de serviços burocráticos do hospital. No afã de dar vazão à sua arte, após uma festa da Seção de Terapêutica Ocupacional, propôs a Nise da Silveira – psiquiatra que já desenvolvia várias oficinas nessa área –, que se montasse uma exposição ou um ateliê de pintura. A psiquiatra gostou da ideia e disse que só não tinha aberto ainda um ateliê por falta de alguém habilitado para tanto ou de um funcionário que ficasse responsável. Almir Mavignier foi transferido para a incipiente Seção de Terapêutica Ocupacional, com o apoio de Paulo Elejalde, diretor do hospital (Mavignier, 2004). Aos 64 anos, em uma de suas raras visitas ao Rio de Janeiro, que deixou em 1951 para se fixar na Alemanha, Almir Mavignier (1989) ofereceu sua versão sobre o início do ateliê de pintura em 1946, quando ele era um jovem de 21 anos: O meu encontro com a Nise foi um encontro muito bom, porque eu precisava dela e ela precisava de mim. Eu vim aqui pro hospital porque precisava de um emprego que não durasse muito tempo como nos empregos normais, das 8 às 6 da tarde, e justamente o horário do hospital aqui, naquela época, acho que era das 10 horas da manhã até 15 horas, me daria tempo de trabalhar depois como pintor, porque eu era pintor e queria fazer pintura. Agora, eu vim aqui como diarista, artífice diarista, no fundo pra acalmar os internados, trabalhar na enfermaria, e como eu tinha um curso científico ginasial, o Paulo Elejaldo, diretor daquela época, não quis; disse “ele não pode acalmar o doente, não tem físico para isso”, e fiquei eu acalmando a mim mesmo, numa situação de não fazer nada o dia inteiro. Até que vi uma festinha do grupo da seção terapêutica, seção de práxis-terapia, e uma doutora que estava chefiando, e eu então tive a ideia de perguntar se ela não tinha interesse de fazer, também um ateliê de pintura. Falando francamente com vocês, no fundo eu queria ter o meu ateliê, porque eu não tinha assim o idealismo que vocês têm hoje. Eu não sabia o que iria acontecer, e perguntei à Nise se ela não tinha interesse em iniciar esse ateliê; ela disse: “mas eu espero há muito tempo uma pessoa que possa fazer isso”. De modo que realmente nos entendemos perfeitamente e ela conseguiu do Paulo Elejalde todo o esforço, toda aquela parte térrea do hospital, e começamos a trabalhar. As relações entre a Nise e eu eram as melhores possíveis, porque ela me ensinava, me instruía, me dizia como trabalhar com o pessoal, de não influenciar, de não mexer em coisa alguma, apenas dar uma orientação técnica. Ela achava que era muito bom que eu pintasse também e não fizesse o papel de inspetor que está olhando o doente, que está dirigindo, com função de bedel. Então começamos a trabalhar (Mavignier, 1989. Destaque nosso). Mavignier tinha o desejo de trabalhar com pintura e Nise da Silveira já tinha lido sobre o uso da pintura no tratamento de pacientes psiquiátricos e tinha tomado conhecimento dos trabalhos de Ulysses Pernambucano e Osório Cesar. Assim, o contato entre eles propiciou a criação do Ateliê de Pintura de Engenho de Dentro, que foi inaugurado em nove de setembro de 1946 (Museu de Imagens do Inconsciente, 1980). Almir Mavignier, de personalidade muito aberta e expansiva, já nos primeiros meses do ateliê convidou outros artistas e críticos de arte para conhecerem o trabalho. Os primeiros convidados foram os jovens amigos e artistas iniciantes Ivan Serpa e Abraham Palatnik. Eles acompanhavam Almir em visitas aos finais de semana ao Ateliê de Pintura de Engenho de Dentro, onde conheceram a produção plástica dos doentes que começaram a trabalhar ali com Mavignier. “Os participantes do atelier fizeram obras surpreendentes, que contribuíram para um ambiente fascinante de admiração e respeito” (Mavignier, 2004). Destacando o depoimento: “falando francamente com vocês, no fundo eu queria ter o meu ateliê”, Mavignier manifesta seu desejo de produzir arte, onde quer que fosse. O lugar possível naquele momento era dentro de um hospital psiquiátrico. Em 1989, Mavignier explicita o motivo de aceitar o trabalho no ateliê de pintura: me desculpo muito de destruir as ilusões. Não foi fazer sacadas e dizer que pensei em terapêutica ocupacional. Não pensava nada disso, era completamente diferente, só pensava numa coisa: um serviço que desse tempo de pintar; se possível um ateliê no próprio serviço é ideal (Mavignier, 1989). Mavignier (2006) conta que nessa época morava em Vila Isabel, bairro de trabalhadores, ligado à história do samba carioca e berço do grande compositor Noel Rosa. A família não dispunha de recursos e era necessário que o jovem Almir buscasse trabalho remunerado para seu sustento e para a continuidade de sua formação profissional. Para seguir a carreira artística, Mavignier teria que superar a barreira de acesso ao mundo das artes, ter seu espaço para produzir, encontrar as pessoas certas para serem seus professores. Transcrevemos o trecho da entrevista em que Mavignier conta sua iniciação no mundo artístico: Minha primeira lembrança é que, aliás eu nunca disse, nunca foi escrito isso. No ginásio já eu era assistente do professor de desenho. No ginásio Vera Cruz. Eu assistia o professor, quer dizer, quando ele não podia dar aula, eu dava no seu lugar. O segundo contato era que eu pintava cartão postal e uns quadros que eu descobri depois que era uma boa pintura italiana. Depois então que eu resolvi, eu sabia que precisava fazer alguma coisa útil, utilitária, fazer alguma coisa para ganhar dinheiro. Não fazer pintura ou arte, aquele problema que tem todo artista jovem, como viver da arte? (...) Eu conhecia um arquiteto, Ubi Bava. Ele era arquiteto, pintor e professor na Escola de Belas Artes. Ele marcou um encontro comigo e eu trouxe uma pasta de desenhos. Ele me disse o seguinte: “antes de você mostrar o que você faz, tenho uma pergunta: quando você desenha, como é que você se sente?” “Bom eu sinto uma, muito, enfim, sou fascinado...”. “Ah, é assim? Se é assim, você tem talento”. Através dessa pergunta e dessa resposta, ele me disse que eu tinha talento. “Sim, agora mostre seus trabalhos”. Isso foi uma coisa fantástica, que também usei com meus próprios alunos quando vinha a pergunta do talento. A moral da historia é que se o artista jovem tem prazer em trabalhar, tem essa paixão, ele tem talento. Se não tem paixão, não tem talento. Isso já me deu mais forças de me dedicar (Mavignier, 2006). A constatação de Ubi Bava de que o talento está ligado ao desejo de pintar vai ser perseguida por Mavignier na seleção dos participantes do Ateliê de Pintura de Engenho de Dentro, para o qual procura internos que tivessem o desejo de pintar. Ele procurou o frade beneditino Dom Gerardo, que era muito conhecido no Rio por ser amigo das artes. Ele disse ao jovem Mavignier: |
“Você precisa de um professor, um bom professor. No Rio nós temos três pintores: Um é Portinari, o outro é Leskoschek, e o outro é Arpad Szenes. Vamos, tem por um acaso uma vernissage, uma exposição no Ministério da Educação. E vamos lá, vamos juntos lá. O primeiro que nós encontrarmos será o seu professor”. E fomos juntos, encontramos a Vieira da Silva, Maria Helena Vieira da Silva, e o Arpad Szenes (Mavignier, 2006).
Saliento aqui um fator que parece marcar a vida de Almir Mavignier – o “acaso”. O frade Dom Gerardo propõe que o primeiro artista que encontrassem entre Portinari, Leskoschek e Szenes seria o professor de Mavignier (Figura 3.2). O jovem não titubeia, segue seu destino e, no trecho abaixo, narra o encontro com Arpad Szenes, seu futuro professor: E o Dom Gerardo falou e o Arpad Szenes não estava muito de acordo, precisava de dinheiro, precisava viver aqui, eles não podiam fazer obras caritativas; eles tinham vindo da Europa depois da guerra etc., etc. Ganhavam dinheiro com os alunos ricos. Eu não podia pagar nada. Então ele me disse que fosse no Hotel Internacional, que ele queria me conhecer melhor e a Vieira da Silva disse: “não... leve o rapaz. É um rapaz muito simpático”. E através da Maria Helena Vieira da Silva, uma pintora excepcional. Uma pintora muito importante, portuguesa. E ela convenceu o marido dela, Arpad Szenes a ser meu professor. Então daqueles quatro, aqueles três quadros que estão ali, eu fiz no ateliê do Arpad Szenes com toda a liberdade. Mas são os primeiros (Mavignier, 2006). Outra marca de Almir Mavignier é a capacidade de criar redes de contatos que lhe abririam oportunidades. Foi assim que começou a trabalhar no Centro Psiquiátrico Nacional de Engenho de Dentro. Agora para estudar arte, só arte, tinha que trabalhar para ganhar dinheiro, mas num trabalho que me desse tempo para pintar. Tinha uma vizinha que trabalhava no hospital psiquiátrico da Praia Vermelha [antigo Hospício de Pedro II]. E ela me disse: “Olha, tem uma vaga de diarista, guarda, para acalmar loucos, no Engenho de Dentro. Você não ganha muito bem, mas tem um horário das 10 às 15 horas”. Bom esse horário é fantástico. Me apresentei lá. O Paulo Elejalde, o diretor, me viu: “Bom, mas magrinho assim não pode acalmar doente agitado. Mas tá bom, tá bom. Enfim, tá bom, você entra e depois vamos ver”. (...) Já nesse tempo eu procurava as pessoas certas. (...) Vi uma festa do serviço de ocupação terapêutica, uma exposição de bordados, bordados das mulheres. As mulheres faziam bordados, faziam a exposição e vendiam os bordados – trabalhos feitos à mão que serviam para ocupar as doentes (Mavignier, 2006). Nessa época, o Centro Psiquiátrico Nacional era um complexo de hospitais psiquiátricos. No período de 1946 a 1951, os internos dos hospitais participavam de atividades de arte no ateliê coletivo, orientados por Mavignier. De acordo com seu depoimento, também eram desenvolvidas atividades de pintura com um grupo de crianças deficientes atendidas no complexo de Engenho de Dentro, mas ele se ocupou dos adultos primordialmente. Montou seu próprio ateliê em uma sala contígua ao espaço maior. Apenas Emygdio de Barros, antigo torneiro mecânico da marinha brasileira que tinha sido internado alguns anos antes no Centro Psiquiátrico Nacional era convidado a dividir a privacidade deste espaço com Mavignier, enquanto os outros tinham que ficar no espaço coletivo. |
Na Figura 3.3, vê-se uma cena do cotidiano do ateliê. Mavignier conta que, da esquerda para a direita, o primeiro é Isaac Liberato, o quarto, Emygdio de Barros, o quinto, Vicente, pintando uma parede, e o último seria Abelar-do, pintando uma tela. Abelardo também gostava de assinar como Autin.
A exemplo de outros hospitais, como o Juquery, o ateliê não era aberto a todos, indiscriminadamente. Alguns poucos eram convidados. Mavignier, que nunca trabalhara anteriormente como monitor ou professor de pintura, desenvolveu seus próprios critérios para trazer os colegas de ateliê. Primeiramente, procurou internos artistas, ou seja, pessoas que tinham formação ou produção em arte antes de serem internadas no hospital. Foi assim que ele encontrou Raphael, Emygdio e Adelina. Em seus primórdios, o Ateliê de Pintura de Engenho de Dentro resumia-se ao pintor Almir Mavignier e a seus colegas convidados. Então comecei a andar. Eu ia aos pátios e via toda aquela gente, gente nua, o calor enorme, aquela coisa. Olhava: “esse tem cara de artista, esse não tem cara de artista”, uma coisa completamente louca, coisa idiota, mas, assim, lendo as caras das pessoas talvez tenha um... Quer dizer, pode se ler também uma certa sensibilidade, está escrito na cara, e procurava assim. E uma vez, entrei numa enfermaria muito limpa, limpíssima, porque os pátios estavam cheios e as enfermarias eram muito bem tratadas. Era a filosofia e o conceito dos tratadores. Então perguntei aos enfermeiros: “Vocês conhecem alguém aqui que esteja pintando?” (Mavignier, 1989. Destaques nossos). Nos relatos de Mavignier observa-se o critério intuitivo de escolha dos participantes (a leitura da “cara das pessoas”) e outro critério relacionado à experiência artística prévia (perguntando por quem já produzia arte). Olhando a qualidade dos trabalhos de quem procurava se expressar e pintava – fosse nos muros ou mesmo em folhas de papel higiênico, Mavignier escolheria participantes para dividir com ele o ateliê de pintura. Outro critério era o desejo de pintar, que, para Mavignier, significava que a pessoa tinha talento para as artes. Na entrevista por carta concedida por Mavignier em 2004: na época em que estávamos desenvolvendo a pesquisa de mestrado, o artista respondeu às indagações explicando sobre a seleção dos primeiros participantes do ateliê de pintura: Pelas fichas dos internados, procurando-os nos pátios e nas seções dos hospitais, por acaso e por intuição. O acaso fazia descobrir talentos e o acaso fazia cobrir talentos, que ficaram desconhecidos. Não havia seleção porque era terapia (Mavignier, 2004). |
Em um novo e-mail, em 14 de outubro de 2006, Mavignier complementa essa informação:
Não tive a intenção de personalizar o acaso com o monitor. O acaso fez o monitor de encadernação Hernani Loback descobrir o Emygdio. Ele o fez para a sua seção de encadernação, como prova a foto da página 47 [de um livro que ele folheia]: ali está o Emygdio sem interesse de participar, razão pela qual foi levado para o ateliê de pintura, o que aconteceu sem a sugestão de Nise da Silveira. Havia uma liberdade de ação dos monitores entre si. Não foi porém o acaso que descobriu o Emygdio como pintor. Dessa vez foi a minha própria experiência na pintura que [me] fez reconhecer nas primeiras aquarelas e óleos do Emygdio um potencial cromático como nas pinturas impressionistas. Soube logo que me encontrava diante de um pintor. O que me fazia, porém, angustiar era de imaginar que havia ainda outros artistas “esperando” pelo acaso. Afirmar que esses artistas existiam naquela época nos hospitais é mais provável do que negar. Eles ficaram desconhecidos (Mavignier, 14/10/06, por e-mail). Nesse momento inicial de busca por internos que poderiam usufruir de um espaço de expressão artística, Mavignier utilizou-se de critérios subjetivos. Contando com sua intuição, o acaso, dados de atendentes e enfermeiros sobre internos interessados em desenhar, descobriu os pintores de Engenho de Dentro. É interessante acompanhar a narração que Mavignier faz de seu encontro com Carlos Pertuis, por intermédio de um atendente do hospital: “Tem um louco aí que enche, embaixo da cama dele, caixa cheia de papel higiênico com coisas estranhas”. Era o Carlos Pertuis. Então ele disse: “Vocês não me tirem ele, porque ele trabalha aqui, é muito bom, eficiente aqui, e não nos tirem esse homem”. Então eu vi as caixas com desenhos fabulosos em papel higiênico, variações de frutas se transformando em caras de... Eu fiz de um desses trabalhos um cartaz para uma exposição em Zurique, exposição do Centro. Pois bem, Carlos foi um fato (Mavignier, 1989) (Figura 3.4; ver Figura 2.2). A descoberta de Adelina também mostra como se deu a procura por artistas ou pessoas com habilidades manuais dentro do hospital (Mavignier, 1989): Pois bem, havia aqui outro hospital. Então procurei também uma doente e eles me disseram: “Bom, tem uma mulher aí que faz bonecas. Sim, mas ela é muito perigosa, aí, aconselho, não faça, ela é muito agressiva, muito perigosa; você está correndo risco de vida com ela”. Aquilo justamente me interessou: “E por quê?”. “Ah, ela maltrata muito, dá surra nas colegas etc.” e mostrou as bonecas dela. E as bonecas dela me interessaram muito. Era a Adelina. Então via-a: enorme, gorda, carona ameaçadora, e todo mundo dizia “ela é agressiva”. Eu disse: bom, essa mulher precisa de uma pessoa, precisa de uma gentileza, delicadeza, trato etc. Então eu vim buscar a Adelina com um chapéu, a Nise, talvez ela se lembre, a doutora me viu de longe. Chovia. Eu trouxe Adelina protegendo-a com o chapéu, com guarda-chuva. Isso deve ter conquistado a Adelina, essa coisa a encantava, ela ria muito, andava com um balão aqui e ali. Ria muito. No pátio sentou, foi uma pérola, nunca fez, não era agressiva, nada, sempre trabalhou lá, ria muito e olhava, tinha um charme, tinha uma beleza interior muito grande, Adelina. Bom essa era Adelina... (Mavignier, 1989 – destaques nossos). Nise da Silveira já tivera um contato com Adelina: numa ocasião, depois de várias visitas ao local em que a paciente ficava no hospital, estendeu-lhe a face e esta prontamente a cumprimentou com um beijo. Assim, Nise já tinha percebido um lado dócil de Adelina e deve ter orientado Mavignier a procurá-la (Silveira, 1990). Em entrevista para Cristina Amendoeira, por ocasião de sua tese de doutorado, Mavignier deu o seguinte depoimento: |
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Ela ia todos os dias, não pintar, ia trabalhar. Trabalhar, porque esse trabalho podia ser a escultura, a pintura, a modelagem...
O meu contato com ela era um contato que desde o início foi resolvido, nunca houve problema, ela era muito doce, era doce, dócil, muito simpática, de vez em quando sorria, sorridente e sempre ocupada, eu sabia que não tinha nada com o que me preocupar. Ao Emygdio eu era obrigado a dar as telas vazias para que ele aprendesse a terminar, a terminar as vivências dele, e a recomeçar numa nova tela. Para Adelina não, no papel estava lá no papel: Adelina fazia, e também pintou a óleo (Amendoeira, 2005). Na descrição de Mavignier, encontramos um ponto que Nise da Silveira discute posteriormente em seus trabalhos: a agressividade de Adelina. No filme No reino das mães, dirigido pelo cineasta Leon Hirszman em parceria com Adelina Gomes, entre 1983 e 1986, Silveira pontua a diferença entre a visão dos psiquiatras e funcionários daquilo que era observado no ateliê de pintura e em outros serviços de terapêutica ocupacional. Adelina, descrita em seu prontuário como agressiva e perigosa, sempre se mostrou amável e calma durante os muitos anos em que frequentou o ateliê de pintura. Mavignier relata nessa mesma entrevista que não lembra como Fernando Diniz chegou ao ateliê. Descobrimos que ele foi encaminhado em 1949 pela psiquiatra Alice Marques dos Santos1, uma verdadeira aliada de Nise da Silveira (Figura 3.7). Na entrevista de Almir Mavignier gravada em vídeo em 1989, Gladys Schincariol leu um depoimento feito por Fernando Diniz sobre o tempo em que ele ficou no ateliê de pintura sob a supervisão de Mavignier: “Fiquei um ano com o Seu Almir, fui apanhando as coisas. Passou um tempo, ele já estava sorrindo. Ele gostava muito dos alunos dele: Isaac, Adelina, Carlos, Raphael, Brasil, Geraldo, Quintanilha, Alicia. Só gostava daqueles alunos. Aí eu cheguei assim: ‘ta sobrando’; daí ele ficou muito amigo – ‘chega mais, rapaz. Aqui ninguém é dono, aqui é público’, e tudo ali ele que comprava. ‘Olha, meu ateliê é aqui, vem ver meu quadro, todo mundo é dono. Ganho os maiores prêmios, vocês também podem ganhar prêmios’”. – E você, gostava do Seu Almir? “Bom, só sorriso já é tudo pra mim. Se não fos-se o monitor, não tinha as organizações, eles que arrumavam tudo. Seu Almir dizia que pintura também era profissão, ele era professor. No fim do ano de 52, Seu Almir foi viajar, foi ser professor de uma universidade na Alemanha, uma coisa muito boa também. Ele dizia: ‘eu vou, mas venho todo ano visitar todos’, e vinha todo ano. Agora, este ano, ele veio de novo nos visitar. Parece até que era no mesmo dia de 52” (Mavignier, 1989). |
Fernando Diniz reconhece Almir Mavignier como professor, título conquistado somente depois que ele cruzou o Atlântico, no final de 1951; sua carreira como importante figura na Escola Superior da Forma em Ulm, na Alemanha, demorou alguns anos a construir.
Na entrevista de 1989, também conta como o Isaac Liberato chegou ao ateliê acompanhado de uma senhora. Interessou-se pelo piano e foi até o instrumento tocar uma música maravilhosa, um pouco impressionista, ria, e começou a fazer umas pinceladas, era o Isaac (Mavignier, 1989). Isaac Liberato foi internado no hospital em companhia de sua mãe, que o acompanhava em todos os momentos. Muitos anos depois, Nise da Silveira realizou estudos acerca das imagens pintadas por Isaac, que simbolizavam a relação entre mãe e filho. Mavignier conta uma particularidade de outro interno, o Vicente, que pintou um mural (Figura 3.8): |
Depois apareceu também o Vicente, que era um homem muito... Não tanto quanto o Raphael, não estava tão profundamente ali, mas começou a pintar. Fez aquela pintura a guache, uma cachoeira, as pessoas tomando banho, que era uma cena que ele realmente presenciou na Bahia; ele viu aquilo, me contou que tinha visto isso. E eu vi que ele tinha a possibilidade como pintor, que era a minha vantagem ali; eu, como pintor, podia já prever e sentir que ele podia fazer pintura. Então eu dei um muro enorme pra ele lá (Mavignier, 1989).
Essa afirmação de que Vicente pintou um grande mural mereceria ser mais bem investigada. Essa parede pode ainda existir no museu e tal obra pode ser redescoberta. O fato de um interno de um hospital psiquiátrico dirigir outros internos na criação de um grande mural, com figuras elaboradas por ele, é ímpar na história da produção plástica dos alienados. Outro episódio é a descoberta de Raphael (Figura 3.9). Além das garatujas incompreensíveis que ele desenhava, mediante pesquisa em seu prontuário, Mavignier ficou sabendo que ele já havia estudado pintura: |
Depois então procurei pessoas que talvez tivessem pintado antes, o que também era uma forma de achar alguém que tivesse já feito pintura. (...) Então, li no arquivo que aquele tinha feito uma escola de pintura não sei onde; esse era o Raphael. Ele pinta, desenha coisas que não se compreende; desenhava e fazia aquelas estereotípicas, estruturas estereotípicas. Então apareceu o Raphael (Mavignier, 1989 – destaque nosso).
Mavignier iniciou uma verdadeira arqueologia humana, pesquisando um enorme amontoado de pacientes depositados em alas, enfermarias e diversos setores de vários hospitais que formavam um conglomerado psiquiátrico, com mais de um milhar de internos na época. Apesar de a literatura sobre o ateliê enfatizar que este era um espaço essencialmente terapêutico e que não havia uma escolha sistemática dos participantes, os depoimentos sobre aquela época de constituição do primeiro grupo revelam que Almir buscava traços de expressão artística nos seus colegas. Vasculhou pavilhões e dormitórios à procura de talentos adormecidos, e algo intuitivo já o alertava sobre a imensa responsabilidade que isso acarretava. Emygdio é um exemplo de paciente descoberto de forma casual. Hernani Loback, monitor de encadernação, percebeu que Emygdio talvez quisesse começar a pintar, por sua mirada “de canto de olho”. Ao falar com Nise da Silveira, ela respondeu com seu afinado senso de humor: “A interpretação de ‘canto de olho’ é uma ciência apurada, então levem o cliente para o ateliê”. Assim encontrou Emygdio – que, segundo Ferreira Gullar, talvez seja o único gênio da pintura brasileira (Silveira, 1982, p. 67). Mavignier também afirmou que muitos internos do hospital o procuravam por terem desejo de pintar, mas “não eram artistas comparáveis aos conhecidos nomes e que tinham interesse em trabalhar pintando. Nunca houve recusa por ‘falta de talento’. Quem conhece o acervo do museu pode verificar que uma grande quantidade das centenas de obras é de interesse psiquiátrico, e não artístico” (Mavignier, 21/10/06, por e-mail). A pessoa mais presente no ateliê era Almir Mavignier, que estava ali todos os dias, das oito horas da manhã até as três horas da tarde, exceto em alguns domingos. O que era o cotidiano no manicômio? Para os menos de 10% dos internos que iam para Seção de Terapêutica Ocupacional havia o trabalho e a expressão plástica. E para os outros? Podemos ter uma ideia do cotidiano pela descrição de uma interna, a qual foi veiculada na mídia no mesmo ano da partida de Mavignier para Europa: “O dia da psicopata.” Elas acordam às 6 horas. Tomam café, fazem “toilette” (seus miseráveis vestidos de mescla!) e a manhã é quase toda ocupada com os tratamentos. É a hora da visita dos médicos e das aplicações: electroterapia, insulina, etc. Conforme o estado do doente e da prescrição médica, elas vão depois às suas ocupações até 11h30m, quando almoçam. Voltam ao trabalho até 13 horas. Depois do jantar, às 17 horas, são recolhidas às tristes enfermarias (Eneida, 1951). Mavignier traz uma descrição mais precisa; conta que ele começava seu trabalho às 10 horas. Os doentes chegavam às 10h30 e ficavam até as 14h30, pois às 15 horas partia um ônibus que os levava de volta para os respectivos hospitais. Mavignier (2005) conta que, se não fosse esse horário, “um artista como o Emygdio gostaria de pintar até não sei quando”. No salão de pintura, os materiais eram elementares, segundo Mavignier: água para guache, aquarelas e terebintina para óleos. Ele explicava como misturar as tintas e lavar os pincéis. As tintas e telas foram compradas e ele percebeu a necessidade de comprar telas cada vez maiores para Emygdio, por reconhecer sua importância e a qualidade das telas que pintava. |
Eu já sabia que precisa ajudar, dar um material melhor. Para o Emydio, comprei sempre grandes telas. (...) São grandes porque o monitor Mavignier era completamente louco e: é um gênio, nós precisamos os melhores materiais, os maiores. Eu não me identificava com a pessoa, eu me identificava com a importância dum pintor, de um artista. Eu falava para mim mesmo: esse é um Van Gogh. Eu preciso fazer todo o possível para comprar telas melhores, os melhores materiais que eu podia comprar. Comprar as tintas, as mesmas tintas eu comprava para mim. (...) Mas, para aqueles que faziam coisas, eu dava um melhor material para eles, lógico. Para o Emygdio, dava telas, para um outro que não era o Emygdio não podia gastar dinheiro com tela, não havia dinheiro (Mavignier, 2006) (Figura 3.10).
Mas Mavignier não conseguia comprar material de qualidade para todos os participantes do ateliê. Podemos inferir que os materiais eram insuficientes pois o monitor usava a criatividade para permitir a expressão plástica dos participantes do ateliê. Prova disso são algumas pinturas a óleo em papel-cartão, que exigiram trabalho redobrado dos restauradores e conservadores do acervo. Outro dado importante é que Mavignier aprendeu com Arpad Szenes técnicas de pintura que conseguiam diminuir os custos de manutenção do ateliê, mediante o uso de água, vinil e terebentina, as quais Szenes havia desenvolvido para contornar as dificuldades surgidas nos períodos das grandes guerras mundiais. Em carta datada de 29 de junho de 2004 enviada em resposta a um e-mail com 10 perguntas, Mavignier conta que: |
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Emygdio pintava sozinho, também no meu atelier, onde havia mais tranquilidade do que no salão coletivo. Ele pintava “vivências” de sua vida anterior. Era um pintor de lembranças, que se acumulavam da esquerda para direita do quadro. Repintando fazia desaparecer momentos de pintura de grande beleza. Nas grandes telas estão “sepultadas” outras pinturas, que contribuem para uma superfície pastosa. Para um observador como eu, que não devia interferir, sofria realmente a “dor” de vê-lo recobrir, dei-lhe novas telas. Ele compreendeu e começou a terminar (Mavignier, 2004).
A sensibilidade terapêutica de Nise da Silveira complementava a sensibilidade artística de Almir Mavignier. Nise orientava Almir a não interferir nos trabalhos dos pintores de Engenho de Dentro. Muitas vezes Mavignier levava os pacientes para os jardins entre os diversos hospitais que formavam o Centro Psiquiátrico Nacional, para que pintassem ao ar livre. Também diversas vezes conseguiu transporte para que fossem pintar em pontos turísticos da cidade do Rio de Janeiro, como a Capela do Mayrink e a Floresta da Tijuca (Figuras 3.11; 3.12). Por exemplo, ele e Palatnik levaram Emygdio para o Teatro Municipal. Alguns dias depois, Emygdio pintou a tela Municipal, onde fundiu os antigos carros da sua mocidade com o Teatro Municipal do final da década de 1940 (Figuras 3.13; 3.14). Ele os levava ainda para ateliês de amigos e professores da época. Ilustra essa informação a visita de Raphael ao ateliê do gravurista Leskoschek, em Santa Teresa. Esse processo possibilitou um diálogo plástico entre os jovens amigos de Mavignier e os pintores de Engenho de Dentro. No período pós-guerra, a arte moderna dos vanguardistas já se encontrava esgotada e buscava-se uma linguagem que correspondesse à nova realidade. Depois eu levei o Emygdio no ateliê do Ivan Serpa, então o Emygdio disse “ah, hoje pinta-se assim”. Porque eu pintava mais ou menos como o Ivan Serpa, nós dois éramos pintores concreto-abstratos, com formas geométricas. “Assim como, Emygdio?”. Ele disse “cor contra cor”, compreendeu perfeitamente (Mavignier, 1989). Ivan Serpa acompanhou as atividades que aconteciam no ateliê de pintura e às vezes desenhava lado a lado com os internos. Abraham Palatnik foi apresentado a Mavignier depois que chegou de Israel e ficou tão impressionado pela produção dos esquizofrênicos que passou a frequentar o ateliê todos os sábados. Escutei isto do próprio Abraham Palatnik em seu apartamento na avenida Pasteur, no Rio de Janeiro, em um depoimento de 2003: Eu sei que, quando cheguei lá, vi que aquilo não podia ser um ateliê. Era uma sala muito simples onde estava o Emygdio, o Carlos, o Diniz, o Isaac, a Adelina, estavam lá trabalhando. Eu sei que eu fiquei chocado com aquilo, eu fiquei tão arrasado, porque, afinal, eles não passaram quatro anos de Escola de Artes, não passaram nem um dia, nem uma hora. E as obras fantásticas, de uma densidade, cores... E eu comecei a logo me questionar, a minha atuação era de estímulos externos, e eu senti que aquilo não tinha nada de externo, apesar [de] que eram trabalhos figurativos, mas aquilo vinha assim de dentro, só podia ser assim tão atento, era de uma riqueza de imagens, mexeu... Eu senti que meu castelo estava desmoronando. Eu senti isso. E eu não sei... De repente, me deu assim uma sensação [de] que eu tinha que abandonar a pintura, eu não podia mais pintar, não era verdadeiro, era tudo ilusão, porque era tudo estímulos externos. [...] Conclusão: tinha que vir de dentro. Agora, eu era muito novo, tinha 20 anos, meu subconsciente era uma porcaria, não tinha nada para tirar de dentro. [...] Com esta decisão, eu larguei a pintura, mas eu conheci o Mário Pedrosa (Palatnik, 2003). O sentimento que atingiu Palatnik foi de espanto, estranhamento. É o estranhamento que leva os artistas a formularem perguntas e os conduz à procura das respectivas soluções. Ele chegou a pensar em abandonar a pintura e a arte. Levado por Mavignier à casa de Mário Pedrosa, Palatnik expôs o seu drama. Com sapiência e compreensão, Pedrosa riu e disse (segundo depoimento do próprio Palatnik): “Ah, Palatnik, não é o fim do mundo. É muito importante os artistas conhecerem outros aspectos da forma”. Ao ouvir isso, Palatnik percebeu que a forma não era um aspecto tão simples. Pedrosa também emprestou livros e recomendou-lhe o estudo da psicologia da gestalt. Essa contribuição o auxiliou a dar uma nova significação ao que havia ocorrido. Decidiu retomar seu trabalho artístico, mas abandonar o estilo de representação aprendido em Tel-Aviv. Palatnik mergulhou então em outros aspectos da forma que não apenas a figuração. Isso o reconduziu a seus conhecimentos prévios de mecânica e eletricidade – ele se cercou de engrenagens, motores, articulações que começava a mexer, objetos que estimulariam seu processo criativo nesse momento. Palatnik tomou a decisão de não usar mais a tinta convencional. Nas suas próprias palavras: |
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Descobri a cor luminosa, a luz e a sombra colorida: a cor projetada, fazendo uma sombra, outra cor iluminando a sombra, dando a ela uma nova tonalidade e movimento, através de engrenagens e articulações (Palatnik, 2003).
Usando a teoria da gestalt, Palatnik concluiu que tudo era ilusão na pintura convencional. Concluiu que todo o conhecimento aprendido na Escola de Belas Artes eram representações da realidade, pois elas usavam cores e formas que levavam à identificação de figuras e movimentos. Ele fez a difícil escolha de despojar-se das ilusões para mergulhar no território virgem e inexplorado do uso da luz em seu estado bruto, em composições artísticas. Depois de dois anos de pesquisas, em 1949 Palatnik criou o Aparelho Cinecromático, uma experiência inaugural da arte cinética no mundo. O primeiro Aparelho Cinecromático foi denominado Azul e roxo em primeiro movimento e foi exposto na I Bienal Internacional de São Paulo, em 1951. Outro ponto importante foi o tempo que os participantes do ateliê passaram pintando e fazendo arte. Diferentemente deste tempo fragmentado e acelerado em que vivemos, o ateliê foi uma verdadeira oficina coletiva, cujos integrantes passaram longo tempo, por vezes décadas, a produzir e a reinventar sua arte, em um trabalho diário e contínuo. Carlos Pertuis produziu mais de 21.500 obras; Adelina, aproximadamente 17.500 obras. Na introdução do livro Museu de Imagens do Inconsciente (1980, p. 9), Mário Pedrosa cita uma visita que fez com Almir Mavignier à casa de Raphael, em um período em que este estava afastado do ateliê de pintura: Com prazer, cito o nome de Almir Mavignier, com quem algumas vezes saí para visitar Raphael, em casa da mãe dele, sob os arcos; depois do “trabalho”, saíamos em família: Mary, guiando um Citroën, eu, Almir e Raphael. Com sua voracidade de artista, a mil léguas do burocrata funcional, Almir mal chegava à casa da mãe de Raphael, corria a buscar o cavalete que, previdentemente, já havia levado em outra ocasião, e os outros apetrechos; e ei-lo a chamar Raphael, bem refestelado num pijama listrado, como em férias na casa materna, todo entregue a travessuras, que sua mãe bem as conhecia, como, por exemplo, a de esconder as chaves da porta da rua no pote d’água da cozinha, − e sentá-lo numa cadeira, em frente ao cavalete. Já contei alguns desses episódios de Raphael no trabalho criativo, ou melhor, no seu ofício, diante de nós. Era jovial, tinha preguiça, reclamava do calor, “abafado”, desabotoava o cós do pijama e, afinal, quando lhe dava na telha, começava a trabalhar mas terminava por dar sinais de não querer mais, cansado. |
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Pedrosa não comenta se Mavignier usava modelo vivo ou natureza morta ao orientar o desenho de Raphael, apenas salienta a importância do criar livremente. Contudo, hoje sabemos que Mavignier propunha modelos para as pinturas, entre os quais, em alguma ocasião, figuraram o próprio Pedrosa, Murilo Mendes, Palatnik e até mesmo a mãe de Raphael (Figura 3.15).
Em diversos trechos da entrevista concedida em 1989, Mavignier explica que seguia a orientação de Nise da Silveira sobre a não interferência direta na arte dos internos, a fim de permitir a livre expressão das imagens do inconsciente. Ao falar de seu trabalho com Raphael, ele revela que não considera que a sua atuação, ao propor desenhos de observação de montagens de naturezas-mortas ou de retratos baseados em modelos humanos, fosse uma contestação da abordagem a ser seguida. Para dar vazão ao potencial dos participantes do ateliê, utilizava diferentes recursos com cada um: sabia como fazer para que Raphael pintasse retratos e naturezas-mortas; comprava telas cada vez maiores para Emygdio criar suas obras, e assim por diante. Mavignier foi fiel à máxima que diz ter aprendido em Engenho de Dentro e que utilizou durante toda sua vida como professor e artista: “a minha mensagem sobre a importância da obra e do Museu de Imagens do Inconsciente é que o artista deve procurar descobrir a sua própria personalidade” (Mavignier, 2004) (Figura 3.16). Não encontramos nos textos de Silveira comentários sobre a metodologia de orientação de Mavignier. Entretanto, ela reconhece que, depois que Mavignier foi para a Europa em 1951, a arte de Raphael entrou em decadência, voltando para formas estereotípicas e garatujas. A postura assumida por Almir Mavignier em 1946, no início do Ateliê de Pintura de Engenho de Dentro, foi marcante para o desenvolvimento posterior de exposições e forneceu bases para a criação do Museu de Imagens do Inconsciente. Ele assumiu um papel de curador das obras produzidas no ateliê de pintura, convidando críticos, artistas e profissionais responsáveis por museus de arte da época para o visitarem. Buscava, assim, obter apoio de importantes figuras do mundo artístico, a fim de divulgar os quadros do ateliê de Engenho de Dentro. A primeira exposição foi inaugurada em dezembro de 1946, dentro das dependências do próprio Centro Psiquiátrico Nacional, menos de três meses após o início das atividades do ateliê de pintura. Essa exposição incluía obras de crianças e de artesanato. A mostra do Ateliê de Pintura de Engenho de Dentro foi organizada por Almir Mavignier. Entre as obras da primeira exposição, aparecem produções de menores, incluindo os trabalhos do Wilson, que mobilizaram o interesse de pessoas como Helena Antipoff (Figura 3.18). Diante do sucesso da mostra e do interesse gerado na mídia, principalmente pela reportagem um tanto sensacionalista “Os loucos são pintores” (1947), publicada no jornal O Globo, de nove de janeiro de 1947, os trabalhos foram transferidos para o prestigiado prédio do Ministério da Educação e Saúde (Figura 3.19), no Rio de Janeiro. Tratava-se de um prédio modernista, considerado na época um local privilegiado da cidade para a exposição de arte, com um espaço específico onde as mostras eram montadas. |
A mostra ficou aberta ao público por quase 20 dias (de 4/2 a 23/2/47).
Mavignier (1989) contou que encontrou Mário Pedrosa nesta exposição do ateliê no Ministério da Educação em 1947 diante dos desenhos de Raphael e convidou-o para visitar o ateliê. Foi por seu intermédio que houve o encontro de Nise da Silveira com Mário Pedrosa. Esse encontro mudou a história do Ateliê de Pintura de Engenho de Dentro. Pedrosa foi o mais ferrenho defensor do que chamou posteriormente de arte virgem. Eu estava naturalmente registrando com muito interesse quem foi, quem olha, quem não olha, quem visita, aquela curiosidade, qual a impressão que esses trabalhos iam fazer lá fora. E havia um sujeito acocorado, tinha a do Raphael e estava ali, então comecei a conversar com ele, camarada inteligente e era o Mário Pedrosa. Então nasceu a nossa amizade, Mário Pedrosa e eu, através do Raphael, Emygdio. Ele disse “ah é você que está fazendo... Fabuloso, fabuloso, fantástico. E onde é que é isso? Porque eu quero visitar”. “Pois venha, venha visitar... Estamos no Engenho de Dentro”. “Vou amanhã visitar”. Então eu disse “olha, Nise, amanhã nós vamos receber uma visita muito importante, que é um crítico de arte, que vai vir aqui, se interessou muito”. “Quem é?”. “Mário Pedrosa” (Mavignier, 1989). Curiosamente, quando tarde Nise da Silveira fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, em 1952, Pedrosa foi um dos seus grandes apoiadores. Era um intelectual com militância política que abriu caminho na década de trinta para o pensamento trotskista, contrário ao pensamento do Partido Comunista na época. Nise se envolveu profundamente com o Partido Comunista nas décadas de 1920 e 1930, tendo sido presa pela polícia de Vargas em 1936. A independência intelectual era marcante na personalidade de Pedrosa e refletiu-se na sua crítica de arte, que, na contracorrente de outros, era inovadora: ele divulgava pensamentos de Paul Klee, Kandinsky, Max Bill e outros, e foi precursor no Brasil de estudos da psicologia da (2) gestalt aplicada à arte . Mário Pedrosa contribuiu de forma decisiva ao colocar a produção plástica dos pintores de Engenho de Dentro no mesmo patamar de outras expressões artísticas da época, como o expressionismo, o abstracionismo e o concretismo. Em 1995, o Museu de Belas Artes inaugurou a Galeria Mário Pedrosa, utilizando uma pequena fração dessa ideia. Foi possível confirmar a circulação de suas ideias na exposição Brasil + 500, no ano 2000, que buscou reconstruir em uma exposição temporária o Museu das Origens3 idealizado por Pedrosa. A ideia central desse museu é a preservação das obras e da identidade nacional. Raul Pedroza (1947), renomado desenhista da época, escreveu ampla reportagem na revista Ilustração Brasileira sobre essa exposição e sobre o Ateliê de Pintura de Engenho de Dentro. A repercussão foi tão favorável que a Associação dos Artistas Brasileiros solicitou que fosse realizada uma outra exposição na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que ocorreu de 24 a 31 de março de 1947, na sede da instituição, encerrada com uma conferência de Mário Pedrosa intitulada A arte como necessidade vital. Nela, Pedrosa reconhece a presença da arte abstrata no Brasil. A palestra foi parcialmente publicada no Correio da Manhã (Pedrosa, 1947) de 20 de abril de 1947 e encontra-se completa no livro de mesmo nome, de 1949, no qual Pedrosa alinha os pintores de Engenho de Dentro com artistas como Calder e Kandinsky. Pedrosa e outros críticos de arte escreveram sobre a exposição dos trabalhos plásticos dos internos do Centro Psiquiátrico Nacional, realizada em 1947 no prédio do Ministério da Educação e Saúde, e posteriormente sobre a exposição na Associação Brasileira de Imprensa. Nessa época, a crítica de arte desempenhava um importante papel; todo grande jornal tinha um crítico de arte e colunas dedicadas ao tema. Pedrosa ousou enxergar a arte dos internos de Engenho de Dentro inserida na modernidade, nas transformações que aconteciam nos movimentos artísticos na década de 40 do século passado. Uma importante mostra foi realizada no final de 1949 no Museu de Arte Moderna de São Paulo e, posteriormente, na Câmara Municipal no Rio de Janeiro. Essa mostra teve uma concepção diversa da primeira, com a participação ativa de Mário Pedrosa em sua idealização, e a escolha das obras feita em conjunto com Almir Mavignier. No ano de 1949, o Ministério da Educação e Saúde recebeu a mostra de pinturas abstratas Do figurativismo ao abstracionismo, exposição inaugural do MAM – SP. Ela foi organizada pelo crítico belga Leon Degand, primeiro diretor do museu, e reunia 51 artistas com 95 trabalhos ao todo, incluindo cinco telas de Wassily Kandinsky, e trabalhos de Alexander Calder, bem como três artistas brasileiros, entre os quais, Waldemar Cordeiro. Mavignier foi à vernissage com a intenção de convidar Leon Degand para visitar o ateliê. Degand foi com sua esposa para o Engenho de Dentro e, segundo Mavignier, emocionou-se com as obras. Mavignier nos conta essa história na correspondência de 2004, relatando que fez uma proposta para Leon Degand durante a visita de realizar uma exposição destas obras em seu museu. Degand prontamente respondeu: “não faço mostras de alienados, porém uma exposição de ‘artistas do Engenho de Dentro’”. Assim, os artistas da periferia foram introduzidos no espaço oficial das artes. Numa segunda visita que fez para programar melhor a exposição, Degand relatou a Mavignier que, ao voltar da primeira visita ao Rio, já em São Paulo, participou de um banquete onde declarou: “Acabo de ver os artistas mais importantes do Brasil” (Mavignier, 2004). Com essa fala instigou os outros convidados, que ficaram ansiosos para saber que artistas o renomado crítico havia descoberto. Degand, então, surpreendeu os convivas, que esperavam algum nome conhecido: “São os artistas do Engenho de Dentro, no Centro Psiquiátrico Nacional”. De volta a Engenho de Dentro, Degand, Mavignier e Mário Pedrosa fizeram a seleção das obras. Coube ao diretor do MAM/SP dar um título a essa mostra: Nove Artistas do Engenho de Dentro. Assim, essa exposição teve a organização de dois críticos reconhecidos internacionalmente. A eles somou-se a opinião de Sérgio Milliet. Em um de seus artigos, Milliet (1949) expôs um ponto de vista interessante. Ao comparar as obras de Engenho de Dentro com as do ateliê do Juquery, criado muitos anos antes por Osório Cesar, concluiu que a qualidade estética e artística era muito diferente, ousando dizer que existia uma seleção muito mais apurada no ateliê de Engenho de Dentro. Leon Degand precisou ir para a França no meio do ano de 1949. Mesmo assim, a data de abertura da mostra foi mantida e realizou-se no final daquele ano, como tinha sido combinado a princípio. Enquanto realizava-se a mostra em São Paulo, um dos participantes da exposição era lobotomizado no Rio de Janeiro. Apesar do reconhecimento artístico de suas esculturas e da luta empreendida pela psiquiatra Nise da Silveira, opondo-se a essa conduta clínica, Lúcio foi lobotomizado e sua criação artística entrou em colapso. Nise da Silveira escreveu posteriormente um artigo sobre a desagregação da personalidade de Lúcio e a degeneração de sua criatividade artística. Mais dois frequentadores do ateliê de pintura foram lobotomizados: Laura e Anderson. Os estudos comparativos de Silveira sobre a produção plástica antes e depois da lobotomia foram citados por Iracy Doyle no artigo “Egas Moniz e o espírito do tempo”; por Robert Volmat no livro L’art psychopathologique e no artigo “La création et la lobotomie” (Melo Junior, 2005, pp. 106-7, passim). Depois de apresentada no MAM-SP, a mostra Nove artistas do Engenho de Dentro foi para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro com o apoio do então presidente da casa, o prestigiado poeta Jorge de Lima (1949a, 1949b), que escreveu sobre a qualidade da mostra, com críticas elogiosas. No Rio de Janeiro, a mostra mobilizou uma acalorada discussão entre dois críticos prestigiados na época sobre a qualidade das obras. De um lado, Mário Pedrosa falava da importância desses trabalhos e, de outro, Quirino Campofiorito tecia duras críticas à qualidade estética deles. Cabe comentar que Campofiorito, em artigo anterior sobre a primeira exposição em 1947, havia elogiado a qualidade plástica de algumas obras, mas em 1949 ele mudara de opinião, muito embora afirmasse seu respeito pelo trabalho terapêutico da psiquiatra Nise da Silveira. Essa discussão prolongou-se por mais de um mês nas páginas do Correio da Manhã, onde escrevia Pedrosa, e do Diário da Manhã, onde escrevia Campofiorito, o que despertou curiosidade sobre o trabalho, propiciando que mais pessoas tomassem conhecimento das obras e emitissem seu juízo. Reportagens sobre as obras e a Seção de Terapêutica Ocupacional acabaram saindo posteriormente em revistas de grande circulação. Os artigos na imprensa e as polêmicas – com opiniões avalizadas ou não – ajudaram a tirar a produção dos pintores de Engenho de Dentro das beiradas, do manicômio e dos congressos de psicopatologia, possibilitando que fosse entendida como legítima produção artística contemporânea. No final de 1951, Almir Mavignier partiu para a Europa à procura de uma mudança em sua vida, de novas aventuras e novas possibilidades. O intuito era ficar um ano com uma bolsa do governo francês e conhecer a arte europeia. Nos dias próximos à partida, encontra Emygdio de Barros e pergunta: “Bom, Emygdio, eu vou pra Europa. Você quer alguma coisa, que eu traga alguma coisa?”, e esse camarada me diz: “sim, uma garrafa de vinho Chambertain”... (Mavignier, 1989). Para entendermos o contexto em que se deu a viagem de Mavignier, como ele conseguiu uma bolsa para ir à Europa e continuou funcionário do hospital do Engenho de Dentro, voltemos a um de seus depoimentos: |
Eu não saí do Engenho de Dentro. Eu recebi uma bolsa de estudos, para estudar na França. Os meus estudos coincidiam, eram compatíveis com a minha situação como monitor que estava naquele serviço de como pintor. Não com meu grau de funcionário, não, mas com o meu grau de monitor, sim. Então saí para essa bolsa. Passei seis meses, seis meses Paris, Itália, depois prolonguei, prorroguei a bolsa, e aí vem a grande qualidade da Nise que ela tolerou isso e não tolerou apenas, ela sustentou (Mavignier, 2006) (Figura 3.20).
Mavignier completa comentando como se sentia antes da viagem e o que a oportunidade de conhecer a Europa mudou em sua vida: essa viagem me abriu as portas. Era muito selvagem, muito selvagem, eu ainda sou. Selvagem nasce e fica. Não melhora, congela e não voltei ao Brasil. A despedida da Europa, eu sabia que só podia ficar seis meses, não tinha dinheiro para morar. Então depois deram a prorrogação de bolsa aqui, mas nesse primeiro momento, bom, eu não posso voltar ao Brasil sem conhecer o Prado. Sem ver a Tate Gallery, a National Gallery, sem ver os museus da Itália. Então comecei a ver os museus, antes de voltar ao Brasil. Então prorrogou-se a minha bolsa. Foi prorrogada. Então, antes de terminar a outra prorrogação eu comecei a ver de novo os museus. E assim fiquei. Vendo os museus... (Mavignier, 2006). Depois de uma temporada visitando museus, trabalhou em Paris como pintor e cartazista. A seguir se fixou na Alemanha, tendo estudado na Hochschule fur Gestaltung, em Ulm (Mavignier, 1994). Já residente na Alemanha, foi convidado por Nise da Silveira a montar a exposição A esquizofrenia em imagens – uma mostra dos pintores de Engenho de Dentro no II Congresso Internacional de Psiquiatria, ocorrido em Zurique, na Suíça, de 1 a 7 de setembro de 1957. A exposição brasileira, inaugurada por C.G. Jung na manhã de 2 de setembro de 1957, ocupava cinco salas, onde foram apresentados materiais iconográficos organizados por temas. A última sala era dedicada a desenhos de Raphael. Mavignier fotografou a visita de Jung à mostra brasileira no congresso. Essa mostra foi posteriormente transferida para o Kunstgewerb Museum, também em Zurique, onde permaneceu entre novembro e dezembro de 1957. Na sequência, essa mesma mostra foi para o espaço de exposições do Hôtel de Ville em Paris. Para finalizar, trazemos um episódio que consideramos significativo por mostrar o grande envolvimento de Mário Pedrosa no ateliê de pintura e também por evidenciar o caráter brincalhão do jovem pintor. A obra (Figura 3.21) que resultou deste evento é emblemático dos intercursos estéticos intensos do período. Mavignier conta: O Emygdio esteve uma semana lá em casa, veio do interior, para o Rio, ficou uma semana sozinho com a minha mãe. Quer dizer, eu tinha que trabalhar, ele ficava sozinho pintando. Então o Mário Pedrosa dizia: “beleza, vamos fazer a experiência com o Emygdio” assim, por exemplo, assim: “diga ao Emygdio pra fazer um retrato dele, um autorretrato”. E autorretrato é uma coisa que é impossível dizer, mesmo pra uma pessoa que é normal. Autorretrato é um diálogo consigo mesmo, que se a pessoa quiser fazer, principalmente uma pessoa que está doente, não se pode dizer: “faça um autorretrato seu”, coisa que, sem ser médico, é uma coisa absurda de fazer. |
Referências
E o Mário, grande crítico, teve essa ideia absurda. Então falei:
“Mário, acho que não é possível”; “É possível, você diz e...” – uma coisa fabulosa. Então eu resolvi fazer um retrato do Emygdio, e dizer ao Mário que o Emygdio estava fazendo o autorretrato dele. Fiz um retrato muito bom, tenho ainda esse “autorretrato”, é o Emygdio. Então procurei fazer nas cores do Emygdio, o vermelho e verde. O Pedrosa tava muito nervoso, diariamente me telefonava, pra saber como é que ia o retrato, e como é que ele fazia. Disse “bom, ele faz”. “E que cores ele faz?” “Bom, as cores típicas dele, azul e verde e...” “Traga, traga.” “Não posso, não posso separar o retrato ainda, não tá pronto.” “Mas por que não? Então eu vou ver.” “Não, você não venha ver nada, porque você vai interromper esse processo subjetivo de fazer um... [auto retrato]” – E fiquei ali, dei corda nele, maltratando ele, e então, depois de um certo tempo, não sei, dez dias, eu disse: “Olha, ô, Pedrosa, acabou” e “Traga, traga”. “Não posso trazer porque tá molhado... não vou trazer um retrato molhado e acabar tudo”, e o quadro tava realmente molhado, aí ficou seco e eu levei o quadro. Palatnik foi testemunha, e mostrei. Ele caiu e subiu: “Mas que beleza de retrato! É uma maravilha, mas isso não há Portinari, não há Segall, não há nada”. E eu perguntava: “e o fulano?” “Ah, cretino, não sabe pintar.” “E aquele?” “Mas Mário, você diga, talvez você esteja entusiasmado, olhe objetivamente o retrato e diga se é uma boa pintura.” “É lógico que é uma boa pintura, você que é cretino e não sabe ver pintura, mas é uma boa pintura”. Então: “olha aqui, Mary” – a mulher dele –, “olha aqui”. E a Mary: “hum, é do Emygdio?” E disse: “olha, ô, Vera, venha aqui”. E assim a Vera: “é estranho, mas é um bom quadro”. E depois: “olha, ô, Mário, você diz que é o maior retrato na pintura brasileira, você pode escrever isso e assinar?” “Claro!” “Olha, então eu tenho que te agradecer, muito obrigado.” “Como ‘muito obrigado’?” “Fui eu que pintei.” “Você é cretino, você não pode pintar isso!” Coitado! É a primeira que eu... O retrato existe, tá lá comigo. (Mavignier, 1989). Notas
(a) Bibliográficas
Amaral, A. Cronologia. In: Museu de Arte Moderna de São Paulo. Mavignier 75. Hamburgo, Alemanha, 2000. Eneida. Mulheres contam sua vida: estas, agora, vivem em um outro mundo. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 19 dez. 1951. Lima, J. A arte dos Alienados. A Manhã, Rio de Janeiro, p. 4, 23 de nov. 1949a. ________. Nove Grandes Artistas. A Manhã, Rio de Janeiro, 30 nov. 1949b. Mavignier, A. Anotações do artista. In: Museu de Arte Moderna de São Paulo. Mavignier 75. Hamburgo, Alemanha, 2000. Melo Júnior, W. Ninguém vai sozinho ao paraíso: o percurso de Nise da Silveira na psiquiatria no Brasil. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. Milliet, S. Arte e Loucura. O Estado de São Paulo, São Paulo, 15 out. 1949, p. 6. Fundação Nacional de Arte. Museu de Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro, RJ, 1980. (Coleção Museus Brasileiros, 2). O Globo. Os loucos são pintores. Rio de Janeiro, 6 jan. 1947. Osório, L. C. Abraham Palatnik. São Paulo: Cosac Naify, 2004. Pedrosa, M. Arte, Necessidade Vital. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 de abr. 1947. Pedroza, R. Arte e Loucura. Revista Ilustração Brasileira, p. 18-19, mai. 1947. Pompeu e Silva, J. O. A psiquiatra e o artista: Nise da Silveira e Almir Mavignier encontram as imagens do inconsciente. 116 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006. Silveira, N. da. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Editorial Alhambra,1982. (b) Outras mídias Imagens do Inconsciente 2 – No reino das mães, dirigido por Adelina Gomes em parceria com o cineasta Leon Hirszman, entre 1985, 55, cor, 16mm. Brasil/RJ Leon Hirszman Produções. Mavignier, A. Depoimento [23 set., 1989]. Rio de Janeiro. Entrevista concedida à equipe do Museu de Imagens do Inconsciente. (DVD; 4h28min.; 2 discos). ________. Resposta de questionário proposto por José Otávio M. Pompeu e Silva [correspondência postal]. Enviada em 28 jun. 2004. ________. Depoimento [14 jun., 2005]. Hamburgo, Alemanha. Entrevista concedida a Maria Cristina Amendoeira. (CD-Rom; 2 horas; 1 disco). ________. Depoimento [dez., 2006]. Entrevista concedida a Patrícia Rohleder Filipp. Hamburgo, Alemanha (CD-Rom; 5 horas; 2 discos). Palatnik, A. Depoimento [abr., 2003]. Entrevista concedida a José Otávio M. Pompeu e Silva, (mini DV; 30 minutos; 1 disco). Silveira, N da. Depoimento [1990] Entrevista no programa Mulher 90. TV Globo. Rio de Janeiro. (DVD; 20 minutos; 1 disco). |