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a@mavignier.com
Marcas e memórias:
Almir Mavignier e o Ateliê de Pintura de Engenho de Dentro

Lucia Reily, José Otávio Pompeu e Silva e colaboradores
Capítulo 5

Almir Mavignier: Um mestre-aprendiz

Ana Angélica Albano
“Mestre não é quem ensina, mas quem de repente aprende.”
Guimarães Rosa
Pequena história de uma coincidência significativa

A criação do ateliê de pintura do Centro Psiquiátrico Nacional em Engenho de Dentro aconteceu por obra da sincronicidade, como Jung definia os eventos que, sem ligação causal, acontecem simultaneamente. Nasceu do desejo de um jovem pintor, funcionário do hospital, de encontrar um espaço para pintar, e da vontade de uma psiquiatra de ampliar os serviços da Seção de Terapêutica Ocupacional, sob sua responsabilidade. Menos importante do que saber quem deu o primeiro passo é reconhecer que o ateliê nasceu de uma coincidência significativa.

Atualmente, a utilização de atividades de pintura e modelagem no campo da terapia ocupacional está bastante difundida em diferentes espaços e é discutida por diversos autores. Talvez por isso mesmo a produção dos pacientes do ateliê de pintura Centro Psiquiátrico Nacional do Hospital Pedro II continue despertando muito interesse e motivando pesquisas tanto do ponto de vista da ciência, como da arte. Olhando retrospectivamente, parece-me que havia, já na origem do trabalho, o presságio de que ali aconteceria uma experiência numinosa, aquela
que Jung descreveu como

“o influxo de uma presença invisível que produz uma modificação especial na consciência” (Jung, 1978, p. 9): um ateliê de alquimista onde o chumbo, a escuridão da loucura, daria lugar à luminosidade de pinturas que, chegando às salas de museus de arte, alterariam muitas consciências.

Uma peculiar simetria parece ter agido intensamente sobre os dois protagonistas desta história singular, durante todo o tempo que conviveram. A consciência apaixonada de que estavam adentrando um território desconhecido era comum aos dois, mas suas perspectivas, bem diferentes. Para a doutora Nise da Silveira, tratava-se da descoberta das imagens do inconsciente; para Almir Mavignier, da descoberta de personalidades artísticas em um espaço inusitado – uma oportunidade de ajudá-las a florescer. Cada um procurou, em seu campo de atuação, autoridades que o apoiassem. Mário Pedrosa foi para Mavignier o que Jung foi para Nise: interlocutores que validaram suas descobertas.

É interessante notar que, entre os pacientes de Engenho de Dentro mais estudados pela doutora Nise até o final de sua vida, estão muitos dos que se iniciaram na pintura com Almir Mavignier: Carlos Pertuis, Adelina Gomes, Raphael Domingues, Emygdio de Barros, Isaac Liberato e Fernando Diniz. Embora o ateliê tenha continuado ativo e o Museu de Imagens do Inconsciente conte hoje com cerca de 350 mil obras, não pode passar despercebido que tanto no livro Brasil: Museu de Imagens do Inconsciente, publicado em 1994, por ocasião da 46a Feira do Livro de Frankfurt, como no Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento, (ver Aguilar, 2000) em São Paulo, em 2000, foram apresentadas obras dos mesmos pacientes do início do ateliê de pintura. Parece-me, portanto, que a força de tais obras pode residir nas condições presentes na origem do trabalho.

Do ponto de vista da psiquiatria, são bastante conhecidas as observações e reflexões de Nise da Silveira, amplamente discutidas e difundidas, tanto através de seus livros, das publicações do e sobre o Museu de Imagens do Inconsciente, dos audiovisuais organizados pela equipe técnica do museu, assim como pelos filmes de Leon Hirszman. No entanto, a doutora Nise foi sempre muito cuidadosa e evitava falar do trabalho do ponto de vista artístico, considerando que isso não lhe cabia:

“sempre me mantive discreta quanto a pronunciamentos sobre a qualidade das criações plásticas dos doentes. Isso competia aos conhecedores de arte. O que me cabia era estudar os problemas científicos levantados por suas criações” (Silveira, 1982, p. 16).

Sua discrição, ou seu foco de interesse nos processos inconscientes, não permitiu que viessem a público, com mais detalhes, as condições de produção que favoreceram que personalidades como Emygdio de Barros, Raphael Domingues e Fernando Diniz pudessem amadurecer artisticamente em um hospital psiquiátrico.

Se compararmos as pinturas selecionadas por Mavignier para o referido livro de 1994, no qual atuou como editor de arte, com as apresentadas pela doutora Nise na obra Imagens do Inconsciente, por exemplo, nota-se, claramente, que as escolhas de Almir foram pautadas pela qualidade artística, enquanto as dela, pelo interesse científico. Os pacientes são os mesmos, a escolha das obras, totalmente diferente. Existiram, portanto, sempre dois pontos de vista sobre esse trabalho.

Cabe-nos, agora, trazer à luz o outro lado da história, a partir da perspectiva do artista.

Do meu encontro com o Museu de Imagens do Inconsciente

No início de 1975, uma reportagem de jornal sobre o trabalho de pintura que uma psiquiatra, Dra. Nise da Silveira, desenvolvia com pacientes esquizofrênicos dentro de um hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro, cativou meu interesse de forma tão profunda, que passei a perseguir notícias que me possibilitassem conhecê-lo melhor. Suspeito que a reportagem deva ter surgido por ocasião da aposentadoria da doutora Nise. Em 1980 a Funarte lançou Museu de Imagens do Inconsciente, a primeira publicação mostrando as imagens ali produzidas e, em 1982, foi publicado Imagens do Inconsciente, o primeiro o livro escrito pela psiquiatra. Assim que chegou às livrarias, ganhei de presente dois exemplares de pessoas diferentes, tão conhecido era meu interesse por esse trabalho.
Imagens do Inconsciente teve um papel decisivo na minha pesquisa de mestrado, defendida em 1983 e publicada em 1984 (Albano, 1984) pois, embora eu estivesse investigando desenhos de crianças e professores, algo distante do universo da loucura abordado naquele livro, foi a maneira de olhar para o ato de produzir imagens que me marcou definitivamente, conforme expresso neste trecho:

A criança, mesmo sem ter uma compreensão intelectual do processo, está sendo modificada pelo desenhar. A Dra. Nise da Silveira, trabalhando no Hospital do Engenho de Dentro com doentes mentais num atelier de pintura, observou a qualidade terapêutica do ato de pintar, não apenas como possibilidade de se conhecer o mundo interno do paciente, mas que os atos de desenhar e pintar em si mesmos são terapêuticos (Albano, 2012, p. 20).

Acredito que naquela época, embora muito jovem, eu já compreendesse que havia entrado em um território intelectual ao qual pertencia, cultivado pelas leituras de Jung e Herbert Read. Passei então a acompanhar as publicações, exposições, cursos e palestras ministrados pela equipe do Museu de Imagens do Inconsciente com intenso interesse. Contudo, o privilégio maior foi ter sido apresentada à doutora Nise em 1985, por um amigo comum, Paulo Cesar Britto, e ter tido a oportunidade de visitá-la algumas vezes, levar-lhe meu primeiro livro, trocar ideias e também observar o ateliê funcionando, quando Fernando Diniz ainda trabalhava ali.

O fato novo dessa história, para mim, aconteceu quando conheci a pesquisa de mestrado de José Otávio Pompeu e Silva (2006) e, pela primeira vez, pude ouvir a voz de Almir Mavignier.

Sempre acreditei que o grande diferencial do trabalho de pintura desenvolvido em Engenho de Dentro residia no fato de as atividades terem sido orientadas, desde o princípio, por um artista. Era evidente nos textos da doutora Nise que a produção dos pacientes não era vista como simples produção artesanal, nem se tratava apenas de deixar tintas e pincéis à disposição deles. Ela sempre valorizara a presença de um artista. Eu, apoiada em minha experiência de orientação de projetos educacionais conduzidos por artistas, estava convencida de que a presença de Mavignier havia sido um fator decisivo para a produção diferenciada que surgira naquele espaço. Entendia que aquilo que eu podia observar no campo da educação deveria ter uma correspondência no da terapêutica ocupacional. Artistas, quando interessados em ensinar, são mais atentos às particularidades da linguagem e, portanto, têm melhores condições de proporcionar os instrumentos e os procedimentos necessários para um bom desenvolvimento do tra-balho.


Tanto nos textos da doutora Nise como nos de Mário Pedrosa há sempre comentários significativos sobre a atuação de Mavignier:

Um fator importante na primeira fase da vida do atelier de pintura foi certamente a colaboração de Almir Mavignier. Em 1946, Mavignier, hoje um dos mais representativos pintores brasileiros, apenas se iniciava na pintura e era funcionário [do hospital] (...) tomou-se de verdadeira paixão pelo seu novo trabalho, nunca pretendeu influenciar os doentes que frequentavam o atelier e, com rara abertura de espírito, respeitava, admirava, tratava de pessoa para pessoa aqueles habitantes do hospital psiquiátrico (Silveira, 1982, p. 14).

Almir, com efeito, não era um monitor como os outros. Era, talvez, o único que, ao exercer sua função, exemplarmente instruído por Nise, carregava ainda consigo uma fé ardente e romântica, e que não transmitia a ninguém: a de que dentro da câmara escura daquele esquizofrênico havia um Gênio. Assim, o monitor-artista se havia proposto uma missão extra: a de oferecer a seus monitorados as melhores condições possíveis para que pudessem “criar” livremente, sem que nada, absolutamente nada, os impedisse (Pedrosa, 1980, p. 9).
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5.1. - Jung na Exposição no II Congresso Mundial de Psiquiatria em Zurique (1957). Foto: Almir Mavignier / Acervo da Sociedade Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente. Jung at the II World Congress of Psychiatry Exhibition in Zurich (1957).
Há que mencionar ainda que a qualidade estética das pinturas produzidas sob a orientação de Mavignier tampouco passou despercebida por Jung (Figura 5.1), que durante a exposição do II Congresso Mundial de Psiquiatria em Zurique, em 1957, fez o seguinte comentário:

Fiquei impressionado com as pinturas dos esquizofrênicos brasileiros, pois elas apresentam no primeiro plano características habituais da pintura esquizofrênica, mas noutros planos a harmonia de formas e de cores que não é habitual na pintura dos esquizofrênicos. Como é o ambiente onde esses doentes pintam? Suponho que trabalhem cercados de sim-patia e de pessoas que não têm medo do inconsciente (Pedrosa, 1980, p. 10).

No livro sobre o Museu de Imagens do Inconsciente, publicado pela Funarte, já era evidente que havia uma atenção especial à linguagem pictórica, mas não havia descrições suficientes sobre o processo de produção que permitissem aferir como este acontecia.

Não apenas a qualidade estética dos trabalhos sempre foi notável, mas também a singularidade manifesta, a personalidade diferenciada, que se apresentava tanto nos temas como na maneira particular de representação que caracterizava o conjunto de obras de cada paciente envolvido no processo.

Quando, através da pesquisa de Pompeu e Silva (2006) tive acesso aos depoimentos de Mavignier, pude comprovar que seu interesse era muito diferente/diverso do despertado nos profissionais da psiquiatria. Como bem observara Mário Pedrosa, ele estava convencido de ter encontrado alguns “gênios” entre aqueles pacientes e não poupava esforços para que tivessem boas condições para pintar.

Mais tarde, com o convite para participar deste projeto – “Almir Mavignier e o ateliê de pintura do hospital psiquiátrico de Engenho de Dentro” – tive oportunidade de trabalhar diretamente com entrevistas realizadas com Mavignier, tanto as que foram gravadas no Rio de Janeiro, pela equipe do Museu de Imagens do
Inconsciente em 1989, quanto a concedida a Cristina Amendoeira em 2005, em Hamburgo. Por intermédio dessas entrevistas, revisitei a história que já conhecia há tanto tempo, mas deparei-me com uma outra versão, que era quase a mesma, mas diferente. Como se os holofotes, ao mudarem de posição, revelassem outros contornos, trouxessem ao palco personagens que estavam em segundo plano, sugerindo outros enredos possíveis. Assim como nos romances de muitos volumes, em que a mesma trama reaparece muitas vezes e se modifica a cada vez que é narrada por um personagem diferente, aparecia diante de meus olhos outra versão do ateliê de pintura – esta na voz do artista. Para ele, o que estava em jogo não era tanto o que estava sendo pintado, mas como estava sendo pintado: a originalidade da forma e não o conteúdo manifesto.

A narrativa que apresento a seguir foi construída com base em um recorte das respostas de Mavignier (à equipe do Museu de Imagens do Inconsciente em 1989 e a Cristina Amendoeira em 2005), em diálogo com textos que ele escreveu para o livro que organizou sobre o Museu de Imagens do Inconsciente em 1994. Procuro evidenciar o método de iniciação na pintura desenvolvido por Almir, enquanto ele mesmo se iniciava como pintor. Minha intenção é desvelar os princípios e procedimentos que nortearam sua conduta, procurando compreender em que aspectos o fato de ser artista, e não terapeuta ocupacional, diferenciou o trabalho do Ateliê de Pintura de Engenho de Dentro, na sua origem.

Procurando artistas em Engenho de Dentro: Critérios de seleção

Na introdução do livro Brasil: Museu de Imagens do Inconsciente (Mavignier, Silveira, Cunha e Mello, 1994), Mavignier escreve:


A tarefa inicial do ateliê consistiu em descobrir interessados em trabalhar com pintura, buscando-os nas enfermarias e nos pátios dos hospitais, entre centenas de internados. Deve-se ao acaso a revelação de personalidades como Arthur Amora, Emygdio de Barros, Fernando Diniz, Raphael Domingues, Adelina Gomes, Isaac Liberato e Carlos Pertuis. Porém, o que mais nos impressionava não era o acaso que nos permitiu descobri-los, mas o acaso encobriu outras personalidades, que permaneceram desconhecidas. Essa frustração aumentava a obsessão da procura (p. 25).

Minha primeira surpresa: Mavignier pôde escolher os pacientes que frequentariam o ateliê. Logo, não foram apenas pacientes encaminhados por terceiros que trabalharam ali. Evidentemente, o ateliê deve ter recebido também alguns indicados pelos psiquiatras, mas, num primeiro momento, ele pôde selecioná-los. Não só os escolheu, como foi à procura de interessados em pintura. Acreditava que, sendo pintor, sua vantagem era a de ser capaz de identificar quem tinha condições de pintar:
“eu, como pintor, podia já prever, e sentia quem podia fazer pintura.” (Mavignier, 1989).


Encontro, aqui, um paralelo com artistas quando trabalham na educação: há uma tendência a dar atenção aos alunos que se diferenciam na linguagem e, frequentemente, prefere-se trabalhar apenas com aqueles que já manifestam um interesse particular por aquela linguagem.

A convicção de que havia artistas no hospital fez com que, quase 40 anos mais tarde, Mavignier ainda lamente o acaso que não lhe permitiu encontrar outros artistas. Conhecendo o ambiente de um hospital psiquiátrico – e ele o conhecia bem, pois já trabalhava como funcionário –, devia saber que não seria muito simples que os internos expressassem claramente seus desejos.

Começamos o trabalho, mas o problema era como encontrar pessoas, percebe? Porque havia dois pensamentos – eu era o artista; eu, no fundo, me interessava mais por arte, e a Nise era cientista e me educava – “olha, isso aqui não é escola de belas-artes, é uma escola assim, assim, assim, e não devemos influenciar ninguém e criar uma atmosfera em que eles possam trabalhar”. Mas, como descobrir essa gente? Então comecei a andar. Eu ia aos pátios e via toda aquela gente, gente nua, o calor enorme, aquela coisa. Olhava: “esse tem cara de artista, esse não tem cara de artista”. Uma coisa completamente louca, coisa idiota, mas, assim, lendo as caras das pessoas talvez... Quer dizer, pode-se ler também uma certa sensibilidade, está escrito na cara, e procurava assim (Mavignier, 1989).

Embora soubesse que não estava em uma escola de arte, ele tinha interesse em criar um espaço diferenciado onde pudesse desenvolver, também, sua pintura. Procurava, então, “colegas”, pacientes com cara de artista. Ele mesmo reconhece que “era uma coisa completamente louca, coisa idiota”, haja vista as condições psíquicas daqueles pacientes.

Meu trabalho lá era procurar artistas; eu sabia que aquilo não era uma escola de artes, claro, era um setor de terapia ocupacional, mas eu não era psiquiatra. Eu era um artista e eu tinha interesse em descobrir os artistas internados. Para mim, o interesse era descobrir os artistas internados; minha impressão é que devia ter artista lá dentro. O meu interesse não era qualquer um que chegasse ali, que fizesse a terapia ocupacional e depois da ocupação fosse embora. Queria encontrar os artistas. Tem artista, deve ter artista, assim como existe artista fora, então comecei a buscar os artistas (Mavignier, 2005) (Figura 5.2).

Ele decide procurar pacientes que já desenvolvessem alguma atividade artística e, pela indicação de um enfermeiro, encontra Carlos:

E uma vez, entrei numa enfermaria muito limpa, limpíssima, porque os pátios estavam cheios e as enfermarias eram muito bem tratadas. Era a filosofia e o conceito dos tratadores. Então perguntei aos enfermeiros: “Vocês conhecem alguém aqui que tenha, que esteja pintando, que faça?”.
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5.2. - Sem título (Pátio do CPN, 1948). Emygdio de Barros. Óleo sobre tela, 65x92cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
“É, tem um louco aí que enche, embaixo da cama dele, caixa cheia de papel higiênico com coisas estranhas”. Era o Carlos Pertuis. Então ele disse: “vocês não me tirem ele, porque ele trabalha aqui, é muito bom, eficiente aqui, e não nos tirem esse homem”. Então eu vi as caixas com desenhos fabulosos em papel higiênico, variações de frutas se transformando em caras de... Eu fiz de um desses trabalhos um cartaz para uma exposição em Zurique (Mavignier, 1989).

Apesar da resistência do enfermeiro, que o queria na limpeza das enfermarias, Carlos foi levado ao ateliê. Logo começou a pintar e produziu muito durante todo o tempo em que lá permaneceu. Onde os enfermeiros viam apenas coisas estranhas, Almir reconheceu desenhos fabulosos e percebeu a potência criativa, que mais tarde se revelaria em pinturas fortes, em um estilo muito característico.

Ele chegou e começou a trabalhar. Não havia coisas que interessava e não interessava. Estava lá e começou a trabalhar, falava muito sozinho (Mavignier, 1989).

Mário Pedrosa descreveu Carlos como “o homem de contornos precisos, das formas límpidas bem marcadas, em que o modelado é quase nenhum e o estilo é dado pelo jogo dos contrastes e as exigências da simetria” (Pedrosa, 1980).

Confirmando a previsão de Mavignier quando viu o conteúdo da caixa escondida, seu trabalho foi muito reconhecido mais tarde, sendo exposto diversas vezes, comentado por Mário Pedrosa e amplamente analisado por Nise da Silveira. Recebeu, ainda, tratamento privilegiado no documentário “A barca do sol” de Leon Hirszman (1986).
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5.3. - Sem título (1951). Adelina Gomes. Lápis de cor sobre papel, 28,5x39cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
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5.4. - Sem título (1951). Adelina Gomes. Modelagem em barro transposta para gesso, 33,18x21cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
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5.5. - Sem título (1948). Isaac Liberato. Guache sobre papel, 31,7x28,8cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
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5.6. - Sem título (década de 1950). Isaac Liberato. Óleo sobre papel, 33x23,5cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
Continuando sua busca nas enfermarias, Mavignier, ouve falar de uma mulher que era muito agressiva, muito perigosa, mas que fazia bonecas. Ele desconsidera a informação sobre agressividade e interessa-se por conhecer a pessoa que criava bonecas. Na bonequeira pressente a escultora.

...e ouvi dizer que havia uma mulher muito perigosa, num dos hospitais vizinhos, uma mulher que fazia bonecas.
A mim me interessava pessoas que fizessem qualquer coisa, fazer boneca já é pra mim um ato de criação. Então eles me preveniram muito, olha, você não leve essa mulher, ela surra as companheiras dela, é uma mulher muito agressiva, todo mundo tem medo dela, ela bate nas outras, vai trazer problema no ateliê, não leve, não busque não tem nenhum sentido. Mas naquela ocasião o meu interesse era ter artistas, aquela que fazia bonecas, me interessava primeiro o fato de fazer bonecas, e depois a agressividade... (Mavignier, 2005).


Aqui se evidencia que o critério de seleção dos pacientes passava pelo ato de criação, não importando o objeto criado. As bonecas de Adelina foram o sinal para que ele a convidasse a frequentar o ateliê (Figuras 5.3; 5.4); apesar de ter sido prevenido de que ela era muito perigosa, gentilmente a conduz à Seção de Terapêutica Ocupacional, protegendo-a com um guarda-chuva.

...e chovia naquele dia, tive a ideia de levar um guarda-chuva para proteger (...) não deixei o enfermeiro trazer, (...) eu quis buscar. Chegando lá eu encontrei uma mulher enorme, gorda, não parecia perigosa, poderia ser, fortíssima. Eu era muito magro, e sem inspetor nenhum, eu sozinho. (...) O fato é que a levei com guarda-chuva, protegi, naturalmente de maneira oportunista, porque eu queria que ela trabalhasse. Então comecei a fazer aquela gentileza, exagerando um pouco, talvez, mas mostrando a ela que tem uma pessoa que é gentil, porque sabia que eram tratados como animais. Então, protegendo da chuva, Adelina era enorme, protegendo da chuva, molhando, mas ela estava protegida da chuva para não se molhar. Nisso tudo havia uma estratégia, porque eu queria ganhá-la sem agressividade, e ela se comportou muito bem, como uma criança. Ela vinha como uma criança, gentil, delicada, muito feminina. Toda aquela gordura, muito mole, macia, muito simpática, e Adelina nunca me deu trabalho.
Aquela forma de buscar Adelina conquistou-a. Comigo não havia problema, não falava nada, era muito introspectiva, desenhava ou trabalhava na modelagem com uma força. Com a mesma força que nas enfermarias batia nas colegas, ela batia no barro, fazia aquelas formas fortes e quando eu vi as primeiras formas de Adelina: a escultora (Mavignier, 2005. Destaques meus).


Mavignier entrou, literal e simbolicamente, na chuva e se molhou junto com Adelina. A um só tempo ele a protegia da água e de sua própria agressividade, e a conquistava. Ele diz que foi uma estratégia. Parece-me mais um ato intuitivo e, sem dúvida, corajoso, considerando que era um jovem que apenas se iniciava no papel de “professor de arte”. A maneira como rememora esse encontro faz-me lembrar as observações de Jung:
“Suponho que trabalhem cercados de simpatia e de pessoas que não têm medo do inconsciente”.

Apresentando o trabalho de Adelina, Mário Pedrosa escreve:

Quando começou a frequentar o ateliê de pintura da STOR era sem dúvida a mais torturada e violenta dos seus frequentadores. Antes de pintar, ocupou-se em esmagar massas com suas poderosas mãos, e nos deu de relance alguns espécimes escultóricos de um arcaísmo impressionante, para os quais fomos encontrar paralelo em obras do neolítico cretense, há milhares de anos passados (Pedrosa, 1980, p. 146).

Determinado a encontrar pacientes que tivessem interesse em arte, o Mavignier não se restringe apenas às enfermarias, observando quem tem “cara de artista”, mas recorre também à leitura dos prontuários e, dessa forma, encontra Raphael:

li no arquivo que aquele tinha feito uma escola de pintura não sei onde, esse era o Raphael. Ele pinta, desenha coisas que não se compreende, desenhava e fazia aquelas estruturas estereotípicas. Então apareceu o Raphael. O Fernando Diniz, não me lembro exatamente como apareceu (Mavignier, 1989).

Porém, nem todos foram “encontrados”. Alguns foram chegando e se instalando no trabalho, como aconteceu com Isaac, que apareceu com sua mãe:

Depois então apareceram outras pessoas; um sempre estava lá, que vinha, que espiava. Vi uma velhinha ao lado dele, sempre com ele, uma velhinha atrás dele, e ele uma vez entrou e começou, sentou no piano e foi a tocar música, uma música maravilhosa, um pouco impressionista, ria, e começou a fazer umas pinceladas, era o Isaac (Mavignier, 1989).
Havia tipos extraordinários, eles andavam de pijama, andavam livres. O Isaac andava com a mãe dele. A mãe dele se internou, dormia lá, porque era mãe, complexo materno. Ela estava lá, não abandonou o filho, estava sempre presente... (Mavignier, 2005).


A expressão artística de Isaac manifestou-se nesse primeiro encontro através da música, passando, mais tarde, para a pintura.

“Isaac pintava com prazer, lentamente. Manifestava menos interesse pela pintura do que pelo piano, que tocava de ouvido. Sem conhecer música, produzia melodias que lembravam Ravel e Debussy” (Mavignier et al, 1994, p. 26).

Pintou retratos e paisagens que, segundo Mário Pedrosa, respondiam “aos mesmos apelos de subjetividade dos retratos. Estas, com efeito, não deixam de apresentar uma qualidade íntima e seus acordes de cor tendem a fundir-se tonalizados na mesma atmosfera musical.” (Pedrosa in Fundação Nacional de Arte, 1980, p. 146) (Figuras 5.5; 5.6).
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5.7. - Sem título (Ateliê de torneiro mecânico, 1948). Emygdio de Barros. Óleo sobre tela, 38,5x46cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
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5.8. - Sem título (1949). Emygdio de Barros. Óleo sobre papel, 33x50cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
Emygdio começou frequentando o serviço de encadernação e Almir o descobre quando observa uma pequena aquarela com pinceladas impressionistas que ele faz:

O Emygdio estava no mesmo hospital da Adelina. O Hernani, o colega, que era o monitor do serviço de encadernação, foi que descobriu o Emygdio. O Hernani quando ia buscar os doentes, entre eles a Adelina, viu o Emygdio sentado num canto, olhando para o Hernani e o grupo que saía. Então um dia o Hernani trouxe um doente a mais. “Hernani, o que você tá fazendo? Nós não temos material, mais nada, e você traz mais um!” “Olha não tive mais coragem, eu ia buscar e ele num canto me olhava com os olhos tão grandes que eu não tive mais coragem. Eu tive que trazê-lo na encadernação (...), mas ele não se interessou. Eu te trago aqui talvez se interesse.” Mas nós não temos mais nada, falei... (...) quando eu vi a pequena aquarela... é um impressionista, − essa era a minha vantagem, eu não era ignorante como pintor, era escolado, eu sabia o que era... como qualquer estudante que tem contato... Podia ler, quando pintava, misturava cores... Então o Emygdio foi aquela revelação pra mim e comecei a comprar material pro Emygdio, telas cada vez maiores, não como para os outros (Mavignier, 2005 – destaques meus)

Conhecia essa história pela versão contada pela doutora Nise, que concluiu seu relato com o seguinte comentário:

E que aconteceu a este homem que falou ao monitor pela linguagem do canto do olho? Seu psiquiatra disse-me que não valeria a pena encaminhá-lo para qualquer atividade, pois já estava internado há 23 anos. Um crônico, muito deteriorado. Entretanto, Emygdio frequentou a oficina de encadernação, onde rapidamente aprendeu a encadernar (antes da internação era torneiro mecânico), e logo preferiu o atelier de pintura. Pintou telas que ultrapassaram o âmbito da psiquiatria e constituem hoje reconhecido patrimônio artístico nacional (Silveira, 1982, p. 67).


Sempre dei especial atenção a esse episódio, chegando a comentá-lo com Nise da Silveira em um de nossos encontros, mas fixava-me na qualidade do monitor que sabia ler os olhos
dos pacientes, sem atentar que o paciente em questão era Emygdio. Hoje leio a mesma história de outra maneira, porque tenho elementos dos quais antes não dispunha. Considerando o estado crônico de Emygdio, ele dificilmente teria apenas “preferido” o ateliê de pintura, se alguém não o tivesse conduzido até lá. Houve, mais uma vez, a intervenção do monitor que sabia ler seus olhos, introduzindo-o a Mavignier, que o acolheu depois de ter observado uma aquarela:

“Uma pequena aquarela... quando eu vi é um impressionista, é isso que tinha a minha vantagem, eu não era ignorante como pintor, era escolado, eu sabia o que era...”

Um pintor reconhece outro quando o encontra. Mavignier reconhece o pintor em Emygdio e se esforça para que ele possa desenvolver sua pintura, nas melhores condições possíveis, mesmo estando dentro de um hospital psiquiátrico. Essa é a diferença do artista, que é também um professor, pois nem todos são generosos e se dispõem a ajudar as pessoas talentosas que cruzam seu caminho (Figura 5.8).

Nas palavras do artista Tuneu, reconheço a mesma qualidade que sublinhei nas observações de Mavignier:
Eu não acho, mesmo, que possa transformar uma pessoa em artista, mas tenho que ter a dignidade de possibilitar, se eu avistar o artista na pessoa. Nós enxergamos o artista e possibilitamos ou re-primimos seu desenvolvimento. Porque tem muita gente que age ao contrário, porque sente ciúmes mortal e demole o artista que a pessoa tem dentro (Tuneu in Albano, 1998, p. 27).

Aqui começa a se delinear o tipo de experiência que aconteceu naquele espaço pelo fato de terem um artista trabalhando com os pacientes. Um artista que começava a se desenvolver como pintor e como professor, e que reconhecia e valorizava um talento quando o encontrava.
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5.9. - Sem título (c. 1950). Arthur Amora (atribuído a). Óleo sobre papel, 47x63cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
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5.9. - Mavignier mostrando reprodução de Amora (2006). Ateliê de Mavignier em Hamburgo. Foto: Delmar Mavignier / Acervo do fotógrafo.
Os artistas descobertos por Almir Mavignier

Carlos, Adelina, Isaac, Emygdio, Raphael e Fernando são nomes mencionados em todas as entrevistas, embora alguns apareçam, apenas, em breves respostas aos entrevistadores; não disponho, portanto, de muitos elementos para comentar seus percursos. Há, ainda, outros nomes que aparecem apenas de passagem, considerando, segundo palavras de Mavignier, “que faziam uns desenhos sem importância, não eram artistas. Havia os artistas e havia os desenhadores, os que se ocupavam, ocupavam como ocupação” (Mavignier, 2005). Distinguia, portanto, entre os frequentadores do ateliê os que eram “artistas” dos “pacientes de terapia ocupacional”. Nas entrevistas, assim como no livro que ajudou a organizar, detém-se e aprofunda apenas as histórias daqueles que considera artistas. Raphael e Emygdio, os mais importantes para ele, são os mais citados nas entrevistas. Para Mavignier, é muito evidente a importância artística dos trabalhos desses dois pacientes e percebe-se, nitidamente, que ele se sente orgulhoso por tê-los descoberto.

Intrigante é a menção a um paciente nunca citado pela doutora Nise: Arthur Amora. Suas pinturas aparecem em destaque, abrindo as imagens do livro Brasil: Museu de Imagens do Inconsciente (Mavignier et al, 1994). Sabe-se apenas que sua breve passagem pelo ateliê no final da década de 1940 foi breve e que ele teria pintado uma sequência de dominós oferecidos por Mavignier como estímulo. Não são citados seus dados clínicos, nem mesmo sua data de nascimento. Suas pinturas, de uma geometria impecável, in-comum em pacientes esquizofrênicos, aparecem apenas nessa referida publicação e são mencionadas muito brevemente na entrevista de 1989:

Uma coisa que eu tenho uma grande dificuldade de esclarecer é por que razão eu tenho em Hamburgo dois quadros a óleo do Arthur Amora e seis pinturas, seis desenhos do Arthur Amora da maior importância, porque foi o único pintor concreto... Eu nunca roubei, não sou ladrão, mas tenho aquilo, não sei como... Tenho aquilo ali, e é uma coisa que me deixa em grandes dificuldades. 
(Anotação de delmar mavignier: Mavignier devolveu todas as obras de Arthur Amora ao hospital)
O Amora surgiu assim: surgiu um sujeito que ficava ali espiando, aquelas coisas... e o Arthur Amora é o primeiro artista concreto do Brasil, o que não se pode dizer sobre o Emygdio ou sobre o Raphael. Quer dizer, isso é importante, eu já disse várias vezes, até já foi publicado em jornais. o Pontual publicou isso (Mavignier, 1989) (Figuras 5.9; 5.10).


Sobre a forma de trabalho: Princípios e procedimentos

O ateliê ficava aberto e havia as pessoas que entravam e saíam como elas queriam, por exemplo, o Isaac. O Isaac não foi buscado, jamais foi buscado, ele andava pelo hospital, andava livre com amãe dele atrás. Um dia ele entrou, entrou lá, sentou e começou a desenhar e ele tocava piano (Mavignier, 2005).

Suspeito que o horário que Mavignier cumpria como funcionário aliado ao seu interesse em ter um ateliê, para desenvolver sua própria pintura durante o expediente, tenham sido os fatores responsáveis para que o espaço estivesse sempre aberto aos internos:

Os internados trabalhavam regularmente, o que contribuía para o seu crescente domínio da técnica pictórica. As pinturas foram realizadas sem orientação teórica e sem conhecimento de reproduções de obras de arte, para preservar a projeção direta de formas e símbolos do inconsciente. Pelas próprias características dos indivíduos que ali estavam, não havia influências recíprocas. Cada qual se concentrava integralmente em seu trabalho, o que me permitiu atuar junto a eles como pintor e não como monitor vigilante (Mavignier et al, 1994, p. 25).

Podemos notar aqui a valorização da regularidade do trabalho, seguida do reconhecimento que isto favorecia o crescente domínio da técnica. Esta observação, aparentemente simples, evidencia que Mavignier não via o ateliê unicamente como um espaço de terapia ocupacional, mas principalmente como um “laboratório” de pintura. Interessava-se pelos progressos técnicos dos artistas que acreditava ter descoberto e valorizava a possibilidade de poderem trabalhar regularmente. Trabalhar diariamente é um desejo de todo artista, nem sempre possível de ser realizado pela pressão da sobrevivência econômica.

Aqueles eram artistas confinados, mas, paradoxalmente, livres para pintar, e progrediam na pintura.

todos eram internados e não eram pacientes, eram apaixonados; pacientes é quando você entra dentro de um consultório e tem que esperar sua vez na sala de espera, você precisa paciência até chegar. Não eram pacientes não, eram apaixonados, era a única coisa a fazer (Mavignier, 2005).

Sua identificação com os internos que considerava artistas, como Emygdio, é tão grande que, em alguns momentos, ressente-se do fato de que não pudessem decidir continuar pintando quando terminava o horário estabelecido pelo hospital:

Era muito difícil quando chegava as três horas, todo mundo, as três horas, as duas e meia da tarde, eles eram buscados, porque às três horas partia o ônibus que ia buscá-los. Se eu não fosse no ônibus,ia ficar pintando para mim mesmo, mas eles tinham que voltar ao hospital a partir de 14:30 h; um artista como o Emygdio, que gostaria de pintar até não sei quando... (Mavignier, 2005).

Ao supor que Emygdio desejava continuar pintando, evidencia sua identificação com ele. Se o tempo, com certeza, é um fator importante para o amadurecimento de uma obra, não é, no entanto, o único aspecto a ser considerado e Almir valorizava também as condições do local de trabalho:
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5.10. - Sem título (Pintura de janela do Ateliê de Pintura, 1948). Emygdio de Barros. Óleo sobre tela, 65x91,5cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
Ah, o espaço era muito grande, uma sala grande, havia um grande corredor, esse
corredor dava para diversas salas pequenas: doutora Nise tinha o gabinete ali, e a assistente social também. Havia então um grande ateliê no fundo, um salão, era nesse salão coletivo que os doentes trabalhavam e havia uma pequena sala para mim, onde eu trabalhava, sozinho. Durante meu trabalho com os internados, eu deixava o Emygdio pintando, que era o único lugar onde o Emygdio podia ter uma certa tranquilidade, porque no grande salão havia uma grande agitação, gente que entrava e que saía. E ele, pensava eu, precisa ter uma certa concentração e atmosfera para fazer seu trabalho. Por isto, os trabalhos dele, ele pintava na minha sala, no meu ateliê e esse quadro com as janelas ele fez pela primeira vez uma paisagem, certamente nessa sala (Mavignier, 2005).


Em sua preocupação em privilegiar Emygdio com um espaço mais adequado de trabalho transparece, mais uma vez, sua identificação com esse paciente. Reconhece ou projeta nele sua própria necessidade de tempo e de isolamento para pintar, uma necessidade muito comum aos pintores. Como Mavignier administrava sua própria privacidade é, para mim, um mistério. Podemos creditar, talvez, à sua extrema juventude essa capacidade de orientar as atividades dos internos, de se entusiasmar com a descoberta de artistas e ainda produzir sua pintura, tudo isso no espaço de um hospital psiquiátrico (Figura 5.11).

As orientações que recebia da doutora Nise para que não interferisse talvez o auxiliassem a se concentrar no próprio trabalho:
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5.11. - Sem título (c. 1947). Almir Mavignier no Ateliê de Pintura. Fotografia negativada de desenho. Foto: Autor desconhecido / Acervo da Sociedade Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente.
A pintura... Se deve pintar quando se quer pintar, quando gosta de pintar porque trabalha no hospital.
(...) Porque eles se sentem mais colegas, quando veem que um também faz aquilo. Como a Nise dizia: “não fazer o inspetor”, para perder aquela coisa. De modo que eu trabalhava, tinha o meu ateliê lá, trabalhava no meu cavalete, eles trabalhavam nos cavaletes e eles olhavam minhas coisas e “bom, é um louco, ele”, me respeitavam, “é um louco, faz o que ele quer” (Mavignier, 1989).


Embora não fosse um terapeuta, instruído por Nise da Silveira, Mavignier considerava que o fato de pintar junto com os pacientes facilitava o relacionamento, pois havia uma transferência positiva: “porque eles se sentem mais colegas, quando veem que um também faz aquilo. (...) Me respeitavam ‘é um louco, faz o que ele quer’”.
Trabalhava sozinho e sua principal tarefa era instrumentalizar tecnicamente os pacientes sobre o uso dos materiais: como dissolver as tintas, como limpar os pincéis. Baseando-se em sua própria experiência como pintor, decidia quem precisava de maior ou menor assistência:

Eu chefiava a pequena salinha de modelagem e o grande salão, dava as tintas, o material, tudo sozinho. Cada um tinha sua mesa. Desenhavam separadamente, mas todos juntos (...) e isso era interessante. Eu também pintava junto na minha salinha, mas eles viam (Figura 5.12). Eles se respeitavam uns aos outros, não havia problema de fazer cópia, eu não dava revistas de artes, não queria trazer influência de fora dentro do trabalho pessoal deles (Mavignier, 2005).

A interferência principal era mostrar que a aquarela se dissolve na água e o óleo se dissolve na terebintina. Depois lavar os pincéis com sabão. É, o uso do material em primeira mão e no caso da Adelina, apenas era o suficiente, ela produzia, produzia. Também no caso do Carlos, que produzia e não precisava fazer mais nada (Mavignier, 2005).
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5.12. - Sem título (1948). Raphael Domingues. Nanquim sobre papel, 47x31,2cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
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5.13. - Sem título (Natureza morta, 1948). Raphael Domingues. Bico de pena sobre papel, 31,6x47,6cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
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5.14. - Sem título (Retrato de mulher, 1948). Raphael Domingues. Nanquim sobre papel, 46,5x31cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
Ao longo das entrevistas vamos percebendo, no entanto, que sua interferência não se restringia apenas ao uso correto das tintas ou ao melhor modo de limpar os pincéis. Mediante uma observação atenta, ele procurava identificar e potencializar a expressão que percebia ser característica de cada um. Em Raphael, reconhecia o mestre da linha, desenhista por excelência, e procurava ajudá-lo oferecendo pincéis que favorecessem o desenvolvimento de outras qualidades do desenho:

...eu dava a ele uns pincéis grandes para não ficar só no mesmo tipo de linha. (...) Aí vocês veem, realmente, a genialidade dele quando se fala que com o mes-
mo pincel, ele fez isso, e sem colocar na tinta, continuou a fazer isso. Então você vê que isso diretamente do tinteiro, vocês podem até perceber, o pincel molhado, preto, depois primeiro aqui, depois aqui certamente, então foi ficando seco (Mavignier, 1989 – destaques meus).


Em outro momento, Mavignier relata como estimulava Raphael, organizando composições de naturezas-mortas e motivando-o a pintá-las:

e havia sessões com o Raphael. Então levava esses papéis, então fazia, arrumava as naturezas-mortas, um bule de café muito kitsch, era um bule de café, os mesmos objetos, uma laranja aqui, uma outra ali e armava e dizia: “Raphael, você faz o que você está vendo”. Conscientemente, eu ficava nas palavras abstratas, o que é que você vê em cima ou embaixo, por trás, mas não dizia o que exatamente para não dizer os dois olhos, por exemplo, ou o nariz, ou a orelha, talvez ele quisesse. Bom, isso era uma consciência que eu tinha como pintor. Porque sabe, como pintor, Picasso pode fazer quantos narizes quiser; o Portinari, as mãos que ele quiser. Essa experiência como pintor me controlava, me orientava. Bom, ele, se quiser fazer seis dedos, sete dedos, não podia – “ó, você fez um com a descoberta de artistas e ainda produzir sua pintura, tudo isso no espaço de um hospital psiquiátrico (Figura 5.11).

Em Emygdio, Mavignier identifica o pintor e não poupa esforços para ajudá-lo a se desenvolver, pois acreditava que ele realizaria uma obra importante se dispusesse de condições adequadas. Intuitivamente percebe que o paciente precisava de espaço para expandir os limites de sua pintura. Sublinho, mais uma vez, a sua condição de mestre-aprendiz, capaz de reconhecer no outro um outro:

Minha primeira surpresa foi, por exemplo, com o Emygdio diretamente, acho que foi primeiro o Emygdio, não me lembro exatamente... A primeira aquarela que ele fez, acho que me identifiquei com as cores, vi realmente que se tratava de um pintor, um pintor muito semelhante ao impressionismo... Quanto mais o Emygdio trabalhava, mais eu estava mais seduzido pelo trabalho dele. Cônscio de que eu estava, ali, diante de uma personalidade muito importante, quer dizer, psicologicamente, pra mim, isso se reduziu a tal ponto que eu era um escravo daquilo. Quer dizer, eu não era um pintor, eu não sabia nem se eu ia ser pintor ou não... Eu li a importância daquele pintor, em relação a mim, era uma importância tão grande que eu dizia... Eu me esquecia de mim mesmo e me dediquei ali, nessa dedicação que vocês têm também, e todo o material... Todo material que eu comprava para mim, comprava para o Emygdio. (...) Dizia “ele precisa de espaço”, é por isso que é importante a atuação de um pintor aqui, porque tem coisas técnicas (...) e o Emygdio precisava – para mim, do meu ponto de vista –, precisava do espaço...
(Mavignier, 1989 – destaques meus).


Mavignier menciona constantemente que se orientava por sua própria experiência com a pintura. Em outro momento, confessa que essa mesma experiência o fazia sofrer. Isso acontecia quando reconhecia uma pintura de qualidade surgindo e logo sendo coberta por outra. Saber quando uma obra está terminada é sempre um desafio para todo artista. Naquele ateliê peculiar, onde os frequentadores não tinham nenhuma pretensão de criar obras de arte, a dificuldade estava nos olhos de quem as enxergava como obras.

...ver o Emygdio pintando e a minha angústia era, por exemplo, tinha um quadro, ele pintava depois vinha e pintava esse em cima. E até que ponto ele deve falar? Naturalmente eu não podia dizer: “você para agora”, não podia. Muitas vezes, num momento difícil, então eu tinha acesso de tosse, eu tossia, ou cantava qualquer besteira e gritava qualquer besteira, pra ver se ele perdia a concentração, e ele voltava ao mesmo ponto, então tá certo (Mavignier, 1989).

Ele reconhecia que Emygdio estava visualizando experiências anteriores (e/ou interiores!) e que era apenas ele que reconhecia, nessas visões, boas pinturas (Figura 5.16).

Porque o nosso erro é o seguinte: [...] nós vemos isso como um quadro e não é isso, essa gente não faz pintura, não faz quadro, eles visualizam experiências anteriores, de modo que, quando fazem uma experiência que já está visualizada, eles têm uma outra experiência, que colocam sobre aquela que eles já visualizaram. Não tem esse sentido [de quadro]... (Mavignier, 1989).

Nesse comentário, ele explicita um paradoxo que, parece-me, era inerente à atividade que exercia, o qual se evidencia nas contradições que vão surgindo ao longo das entrevistas. Constantemente instruído a não interferir, Mavignier sabia que trabalhava com pacientes psiquiátricos, mas, como pintor, era capaz de enxergar qualidades nos trabalhos que passavam despercebidas aos outros monitores e mesmo aos psiquiatras. Embora admitindo que os pacientes não produziam “pinturas”, queria preservá-las. Criava, então, estratégias de conservação das obras que julgava prontas. Algumas dessas estratégias são bizarras, como tossir e cantar; outras mais sensatas, como colocar mais papéis ou telas à disposição deles. A doutora Nise nunca as mencionou, se é que teve conhecimento desses procedimentos, mas, se hoje temos acesso a essas imagens, devemos isso aos métodos pedagógicos pouco ortodoxos de Mavignier.
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5.15. - Universal (1948). Emygdio de Barros. Óleo sobre tela, 104x108cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
O Emygdio não pintava, ressuscitava lembranças, ele pintava lembranças, ele não pintava como um pintor, ele ressuscitava as lembranças (...), visualizava as vivências. Essa vivência pintava da esquerda para a direita, depois recomeçava da esquerda para direita com outras vivências. Quer dizer, ele repintava, ele cobria. O maior dos quadros dele, um castelo e umas figuras, – houve várias fases, havia várias fases do quadro. Então eu via, via e sofria, porque ele fazia coisas maravilhosas, e cobria com outras vivências e desapareciam coisas maravilhosas, coisas fantásticas desapareciam.


E eu sofria, eu sofria, eu tossia para não dizer “Pára!”, eu não podia dizer isso: – “Pára!” Então eu tossia, eu tossia, para aquela vivência, afastar... Eu disse “Não, isso não pode ser assim”, e eu descobri o truque. Comprei várias telas e disse “Olha, Emygdio, quando você tiver pronto com uma vivência sua tem mais, tem outras telas vazias” (Mavignier, 2005 – destaques meus).


Para Emygdio, o pintor oferece telas; para Raphael, o desenhista, papéis.
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5.16. - Sem título (1962). Raphael Domingues. Bico de pena nanquim e tinta de escrever sobre papel, 33x48cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
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5.17. - Sem título (s/d). Raphael Domingues. Nanquim sobre papel, 48x31,7cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
E eu tive o seguinte truque com Raphael: eu vivia com muitas folhas brancas e botava ao lado e dizia... Eu sabia que Raphael não ouvia nada, eu tinha a impressão, mas dizia, se desconfiava que ele não podia entender nada porque ele era muito abstrato, muito abstrato o Raphael, então dizia “olha, Raphael, quando você acabar (tinha esperança), quando você acabar, nós temos aqui papel suficiente. Você acaba aqui e começa um papel novo”. Então eu consegui dele que ele pintasse os desenhos; ele, pintando assim, pintava alguns segundos, quatro, cinco. Eu fazia assim: acabou, ago-
ra você. E ia, voava mesmo longe, porque estava só. Isso eu consegui com ele; com Emygdio foi muito difícil. Eu recebi uma bofetada, agora eu não sei se foi o Raphael ou o Emygdio, não sei se foi o Raphael porque eu devo ter exagerado, então páf! (...) Possivelmente do Raphael, porque o Emygdio não faria isso. Mas não sei. Eu não sei qual dos dois, uma bofetada eu recebi de um dos dois (Mavignier, 1989).


A bofetada expressa que o paciente estava descontente por ter sido interrompido durante um processo onírico, que se desenrolava na ação de pintar. Isso evidencia, mais uma vez, que apenas Mavignier via, na imagem em desenvolvimento, uma pintura acabada.

Trabalhar com Raphael era muito difícil, porque você jamais sabia... Ele fazia um desenho e começava a fazer a estrutura estereotípica, e você não sabia se ele estava completando o desenho ou estava estragando o desenho. Porque a nossa dúvida era essa: até que ponto ele não estava fazendo desenho? desenho que nós achamos que é desenho, não tinha a menor importância para ele (...). Naquela ocasião, eu tinha sempre medo, porque ele começava a fazer isso e ele podia perfeitamente fazer sobre a cara, e eu ali sofria muito porque eu sabia “não posso dizer a ele qualquer coisa”; “não faça na cara”, por exemplo. (...) O nome, Raphael, eu que pedia para ele assinar, ele nunca assinou, o nome Raphael. Dizia “assina o teu nome”, como uma espécie de ponte, para dizer “se reconheça” (Mavignier, 1989).

No desejo de que Raphael, ao reconhecer a autoria do desenho, se reconhecesse como o desenhista que Mavignier via nele, manifesta-se mais uma vez o conflito: interferir ou não interferir. Talvez o conflito pudesse ter sido mais bem equacionado se tivesse sido colocado de outra forma: quando e como interferir. A tensão constante, entre aceitar as instruções de Nise da Silveira e a expectativa de ver manifestos os talentos que pressentia, encontrava momentos de alívio quando alguma interferência externa permitia revelar qualidades inesperadas nos trabalhos dos pacientes:

Bom, o Raphael começou a trabalhar, sentava ali, fazia aquelas estereotipias, pena, dava aquarela e não dizia nada, não tinha o que dizer. Eu era também instruído pela Nise, não influía, não fazia nada, deixávamos. Um dia veio um colega nosso, sujeito de um hospital qualquer: “ô, Raphael, você só faz essas
coisas assim estranhas, escalafobéticas, não se entende nada. Faça um cavalo!” Então ele fez um cavalo maravilhoso, né? Parte que eu não vejo aqui. Um cavalo maravilhoso, foi o primeiro (Mavignier, 1989).


Naturalmente, seu compromisso com os pacientes restringia-se ao horário de trabalho. Foi, portanto, no espaço do ateliê que a maior parte dos trabalhos, que hoje constituem o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente, foi criada. No entanto, merece destaque a atuação de Mavignier em relação a Raphael e Emygdio, nos períodos em que os dois estavam fora do hospital. Acredito que apenas sua admiração pela expressão diferenciada desses pacientes explique o fato de que passasse suas horas de lazer trabalhando com eles. Não há menção de que tenha trabalhado com outros pacientes fora do hospital. Sua insistência em direcionar as entrevistas para Raphael e Emygdio, mesmo quando os entrevistadores estavam interessados em outros nomes, confirma sua admiração e nos aproxima de detalhes da didática que ele foi construindo através de uma observação atenta às necessidades e possibilidades de cada um dos dois.
No caso de Raphael, a interferência parece ter sido mais diretiva, pontual. Visitava-o na casa da mãe e propunha desafios técnicos bem precisos:

Eu ia trabalhar com o Raphael, e, na casa dele, no meu tempo extra do hospital. O Raphael fazia esses desenhos, e eu admirava muito. (...)
Então o Raphael trabalhava muito em casa, ia para casa, então, depois do serviço aqui, eu ia para o Raphael e havia sessões com o Raphael. (...)
E depois eu tinha também interesse, porque eu não era psicólogo, era leigo, completamente leigo, porém tinha interesse, sabia das dificuldades entre mãe e filho, então pus várias vezes a mãe dele como modelo, porque queria realmente verificar como ele interpretaria a própria mãe. Então ele fez alguns retratos da mãe dele; depois eu também quis ver como era o problema do Cristo, da religião, como ele reagia (Mavignier, 1989).


Nas ”aulas particulares” Mavignier parecia sentir-se mais livre para experimentar e desafiar as habilidades dos “alunos” e fazer, finalmente, as interferências que julgava necessárias (Figuras 5.17; 5.18).

A descoberta de que Raphael podia desenhar motivos da natureza, saindo, dessa forma, de seu labirinto de estruturas abstratas, indicou-nos um novo meio de comunicação com seu mundo interior. Ele era solicitado, observava e realizava. Amigos me acompanhavam para vê-lo desenhar, como Murilo Mendes e Mário Pedrosa, que lhe serviam de modelos (...). Mas logo que esgotava a solicitação recebida, perdia-se nas estruturas dissociadas (Mavignier et al, 1994, p. 25).

Nessas ocasiões exigia uma disciplina mais rígida do que seria possível no ateliê coletivo. Por isso, certa feita, especula que Raphael pode ter-se rebelado contra suas exigências, representando-o como um demônio.
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5.18. - Emygdio de Barros [Desenho de após passeio à Capela do Mayrink]. Nanquim pincel sobre papel, 66,3x47,9cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
O Palatnik estava muito junto conosco; eu botava o Palatnik sempre como modelo. Curiosamente, eu nunca, jamais, me dei como modelo. Porque eu nunca fiz autorretrato, sabe? Eu não gosto da minha cara e não gostava daquilo e não queria, mas uma vez ele fez um desenho que só pode ter sido eu, um desenho horrível que eu estava um demônio, porque eu exigia dele: faça isso, faça aquilo. É um sujeito intragável, não é? Com aquela disciplina de fazer isso. E eu sei, só pode ter sido eu, porque ao lado está o retrato do Palatnik, que estava comigo; quer dizer, não podia ser outro (Mavignier, 1989).

O trabalho com Emygdio era de natureza totalmente diversa; consistia em proporcionar experiências que pudessem agregar diferentes qualidades à sua pintura, sem nenhuma orientação explícita.

O Emygdio, ele fez várias saídas. Uma vez fizemos uma excursão ao Alto da Boa Vista. E dessa excursão ele pintou a cascatinha – um quadro maravilhoso – e também a capela do Mayrink. Fizemos uma exposição no centro da cidade, dessa exposição ele pintou o Teatro Municipal, mas isso sem nenhuma petição da minha parte, quer dizer, por isso é que eu diferencio mesmo o Raphael do Emygdio. São coisas fabulosas, geniais realmente dele, mas ele [Raphael], sem aquele estímulo, não fazia nada. Quer dizer, era um artista mergulhado que precisava desmergulhar para descobrir. O Emygdio já é outra coisa, o Emygdio faz por si mesmo. [...] Os carros que ele fez no Municipal não eram os carros atuais. Não estavam na moda, o carro da moda do tempo dele. Se você prestar atenção nos carros, são carros antigos. É o Municipal sim, mas transportou a época em que ele viveu (Mavignier, 1989) (Figuras 5.19; 5.20).

Faz uma distinção importante entre o trabalho de Emygdio e de Raphael, destacando que o primeiro era mais independente, tanto que continuou desenvolvendo sua pintura mesmo depois que Almir foi para Europa, enquanto o segundo nunca mais produziu com a mesma qualidade.
As excursões, no entanto, não se restringiam a visitas a paisagens bucólicas ou urbanas. Ele também levava Emygdio para conhecer os ateliês de outros artistas, na esperança de ampliar sua compreensão sobre a pintura:

Depois eu levei o Emygdio no ateliê do Ivan Serpa, então o Emygdio disse “ah, hoje pinta-se assim”. Porque eu pintava mais ou menos como o Ivan Serpa. Nós dois éramos pintores concreto-abstratos, com formas geométricas. “Assim como, Emygdio?”. Ele disse “cor contra cor”; compreendeu perfeitamente (Mavignier, 1989).

Em algumas entrevistas, Almir comenta como percebe indícios de uma evolução na linguagem da pintura de Emygdio, o que parece confirmar que seus esforços para educá-lo artisticamente tiveram um resultado positivo:

(...) evolução no sentido do tratamento da forma, no tratamento da estrutura, como, por exemplo, a significação que eu mostrei ali, você vê essa, o tratamento da paisagem aqui, o tratamento muito tímido, ele não tinha essa segurança. E aqui, que força que ele tem. Isso é uma evolução, isso é que chamo de evolução como, por exemplo... Uma evolução entre essa pintura e aquela pintura, porque tá muito, muito no começo. Aqui tem uma segurança fantástica.
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5.19. - Sem título (c. 1946). Emygdio de Barros [Produção no início das atividades]. Guache sobre papel 33x44,84cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
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5.20. - Ephrain (1949). Emygdio de Barros [Produção no final do período de Almir Mavignier]. Óleo sobre tela, 70x98cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
(...) o quadro em si, a construção, o equilíbrio da cor, da composição, a surpresa de elementos que ele colocou dentro dessa composição. Esse muro em cima de uma coluna, é um fato surrealista, é um fato que ninguém pintou, não conheço pintores que pintaram um muro em cima de uma coluna. É uma coisa ilógica. (...) Quer dizer, não existe um pintor que tenha pintado isso. Isso foi pintado numa profundidade, isso tem um contato com o chamado inconsciente coletivo. Paul Klee tentou chegar a essa profundidade, mas ele tinha sempre a “passagem de volta”. Porque ele comprava a ida, mas comprava a volta. (...) E o Emygdio não comprou, ele foi sem voltar.
(...) Ele tem essa profundidade que é incomparável. Não se pode comparar (Mavignier, 1989) (Figura 5.21).


Se, para Mavignier, é muito clara a evolução no tratamento da pintura, em contrapartida, ele não consegue precisar, com a mesma acuidade, o que mudou no comportamento de Emygdio:

(...) o que melhorou no Emygdio foi ele, foi o meio ambiente. Nós considerávamos, nós víamos, as pessoas tinham outro contato com ele quando ele estava aqui. (...) acho que o esquizofrênico não pode se dar ao luxo de grandes coisas afetivas... as afetividades assim são muito econômicas, de mostrar para as pessoas...(...) tenho a impressão, pois ele não falava quase – não, muito tímido (Mavignier, 1989).

Reconhece que a importância da obra de Emygdio ultrapassa sua condição de alienado, diferenciando-o, mais uma vez, de Raphael:

O Emygdio é um artista que nos museus não existe. Depois, não surgiu de Matisse, nunca viu Cézanne. Mesmo sem ter visto Cézanne (...). Nós todos, pintores brasileiros, somos influenciados pela Europa. Ele não tem influência de fora. É realmente um fato único. Tem uma qualidade. Por exemplo, tem uma qualidade do ponto de vista de pintura, isso tem uma outra qualidade, tem um outro aspecto. São as projeções de interiores. Depois ele começa, num outro quadro, a pintar natureza, então quer dizer, botou pra fora todo aque-le mundo dele, então começou a olhar a natureza. Então, a fantasia dele começa a se objetivar na pintura. (...) Quer dizer, é um quadro muito forte, não pode ser comparado a nenhum pintor brasileiro nem internacional. (...) Isso ele fez absolutamente sozinho, nada, não tem nada. Que é a diferença do Raphael (...) Mas nós qualificamos o Raphael com aqueles desenhos fabulosos, porque nós somos influenciados pelo Matisse, pelo Picasso, e nós reconhecemos nesses desenhos, os melhores desenhos do Raphael. Talvez seja nosso problema de ligação com Picasso, com Matisse, toda aquela pintura. Talvez a grande face do Raphael é aquela que foi desenhada, que não foi trabalhada com pintura (Mavignier, 1989 – destaques meus).

Suas observações nos levam a refletir sobre o quanto nossa visão é condicionada pelo conhecimento que temos da história da arte. Matisse possibilitou que ele compreendesse a importância dos desenhos de Raphael, enquanto os enfermeiros os viam apenas como coisas escalafobéticas.

Juntando os fragmentos de Mavignier, vamos rastreando suas concepções de arte e como estas determinaram sua conduta como professor. Cada um dos pacientes-alunos mereceu um tratamento diferenciado, que era ditado pela maneira como ele percebia suas inclinações artísticas (Figura 5.22). Um mestre que aprendia enquanto ensinava. Da observação atenta ao desconhecido que se apresentava diante de seus olhos vinha o reconhecimento da potencialidade da obra por fazer. Criar condições para que as tendências plásticas dos internos se concretizassem em pintura, desenho e outras expressões artísticas foi a tarefa que assumiu generosamente e, acima de tudo, em função da grande admiração pelo artista que acreditava existir em cada um daqueles pacientes.
Admirava especialmente a obra de Emygdio, que, para ele, diferenciava-se de tudo que foi produzido sob sua orientação no hospital: “esse é o “milagre” do Emygdio; ele desenvolveu-se paralelo à história da arte, numa significação sempre maior. Fantástico!” (Mavignier, 1989).
Insiste que deveria ser organizada uma exposição da obra de Emygdio, que fizesse justiça ao artista que ele foi, independentemente do fato de ter sido um esquizofrênico:

Bom, no fundo, na minha opinião, não há pintura de louco, não há arte de louco, há arte! Há arte, não importa, tudo é arte. (...) Emygdio merece, também fazer uma exposição do pintor Emygdio, sem outro artista qualquer. O Emygdio sempre teve o azar de fazer a exposição “Emygdio e Raphael” e tudo... As companhias começam a dizer as origens [de hospital psiquiátrico]. Devia fazer uma exposição do Emygdio, apenas Emygdio, ia apenas selecionar coisas... Quando os psiquiatras viam “Ah, isso é muito interessante...”, então tirar [estes que interessam à psiquiatria] da mostra. Separar o que é viável é uma coisa muito discutível. Pode-se discutir muito, mas... Porque a tática é a seguinte: que o Emygdio ocupe uma exposição muito especial dentro da história da arte no Brasil (Mavignier, 1989).

O Raphael e o Emydgio não são mais loucos; na pintura deles existem coisas que são de grande interesse profissional. (...) O Mário Pedrosa incluiu o Emydgio
na Bienal de Veneza, eu vi isso, eu estava em Paris e tive a felicidade, satisfação de ir à Bienal de Veneza. Estavam penduradas uma ou duas naturezas-mortas do Emydgio, sem nenhuma referência à esquizofrenia, louco, como não há a Van Gogh, epiléptico, quando você vê um quadro dele (Mavignier, 2005).


Reconhecer, respeitar e permitir que o outro se desenvolva na sua diferença deveria ser a tarefa primeira de todo professor. Que este artista, Almir Mavignier, quando apenas se iniciava como professor, tenha sido capaz de acolher a diferença de um paciente que estava internado há 23 anos, considerado um crônico, muito deteriorado e perceber nele o artista, ajudando-o a desenvolver sua obra, é realmente digno de admiração.

Passados muitos anos, ao recordar a atuação de Mavignier no ateliê, Fernando Diniz observou:
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5.21. - Sem título (s/d). Álvaro Quintanilha. Anilina e guache sobre papel, 35,6x38,2cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
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5.22. - Sem título (c. 1948). Fernando Diniz. Óleo sobre papel, 58,2x77,5cm. Foto: Augusto Fidalgo / Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
Fiquei um ano com o Seu Almir, fui apanhando as coisas. Passou um tempo, ele já estava sorrindo. Ele gostava muito dos alunos dele: Isaac, Adelina, Carlos, Raphael, Brasil, Geraldo, Quintanilha, Alicia. Só gostava daqueles alunos. Aí eu cheguei assim: “tá sobrando”; daí ele ficou muito amigo – “chega mais, rapaz. Aqui ninguém é dono, aqui é público”, e tudo ali ele que comprava. “Olha, meu ateliê é aqui, vem ver meu quadro, todo mundo é dono. Ganho os maiores prêmios, vocês também podem ganhar prêmios”. (...) Bom, só sorriso já é tudo pra mim. Se não fosse o monitor, não tinha as organizações, eles que arrumavam tudo. Seu Almir dizia que pintura também era profissão, ele era professor. No fim do ano de 52, Seu Almir foi viajar, foi ser professor de uma universidade na Alemanha, uma coisa muito boa também. Ele dizia: “eu vou, mas venho todo ano visitar todos”, e vinha todo ano. Agora, este ano, ele veio de novo nos visitar. Parece até que era no mesmo dia de 52 (Mavignier, 1989).

Com essas palavras, Fernando Diniz revela a sensação de pertencimento proporcionada pela atitude de Mavignier ao compartilhar seus trabalhos, apresentando-lhes a pintura como profissão ao alcance deles (Figura 5.23). Diniz valoriza a qualidade do acolhimento, mas também reconhece a importância da maneira como o espaço era organizado: “só sorriso já é tudo pra mim. Se não fosse o monitor, não tinha as organizações, eles que arrumavam tudo”. A organização do espaço de trabalho explicitava uma intenção didática: a permissão para que os alunos, neste caso pacientes, trabalhassem com autonomia e liberdade. Segundo Jung:


aquilo que atua não é o que o educador ensina mediante palavras, mas aquilo
que ele verdadeiramente é. Todo educador, no sentido mais amplo do termo, deveria propor-se sempre e de novo a pergunta essencial: se ele procura realizar em si mesmo e em sua vida, do melhor modo possível e de acordo com sua consciência, tudo aquilo que ensina (Jung, 1981, p. 60).


Considero notável que um paciente como Fernando tenha sido capaz, em poucas palavras, de apresentar aspectos que fundamentaram a “pedagogia” de Mavignier, confirmando que o que atua é o que o professor realmente é. O artista em Mavignier sobrepôs-se ao professor que ele estava aprendendo a ser. Quando, em 2005, reflete sobre sua vivência em Engenho de Dentro, Almir reconhece a importância do que aprendeu naqueles anos e como aquela experiência o marcou como professor:

O Raphael e a Adelina eram profissionais como funcionários do desconhecido. Essa vivência do Engenho de Dentro me influenciou muito, me marcou muito como professor. O meu conceito pedagógico é ajudar aos jovens a procurar sua própria personalidade... (Mavignier, 2005 – destaques meus).
Referências
(a) Bibliográficas
Aguilar, N. (org.). Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento. Fundação Bienal de São Paulo. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000. (Imagens do Inconsciente).
Albano, A. A. Tuneu, Tarsila e outros mestres... o aprendizado da arte como um rito de iniciação. São Paulo: Plexus, 1998.
________. O espaço do desenho: A educação do educador. São Paulo: Loyola, 2012, 15a edição.
Fundação Nacional de Arte. Museu de Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: RJ, 1980. (Coleção Museus Brasileiros, 2).
Jung, C. G. O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1981.
________. Psicologia e religião. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1978.
Mavignier, A.; Silveira, N. da; Cunha, Márcia Leitão da; e Mello, Luiz Carlos. Brasil: Museu de Imagens do Inconsciente. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 1994.
Pompeu e Silva, J. O. A psiquiatra e o artista: Nise da Silveira e Almir Mavignier encontram as imagens do inconsciente. 2006. 125f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.
Silveira, N da. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1982.

(b) Outras mídias
Hirszman, L. A barca do sol... Carlos Pertuis 70’, cor, 16mm, Duração: 1h10min. Produção: Leon Hirszman. 1986.
Mavignier, A. Depoimento [set., 1989]. Rio de Janeiro. Entrevista concedida à equipe do Museu de Imagens do Inconsciente. (DVD; 4h28min; 2 discos).
________. Depoimento [14 jun., 2005]. Hamburgo, Alemanha. Entrevista concedida a Maria Cristina Amendoeira. (CD-Rom; 2 horas; 1 disco).
________. Depoimento [dez., 2006]. Entrevista concedida a Patrícia Rohleder Filipp. Hamburgo, Alemanha. (CD-Rom; 5 horas, 2 discos).
Marcas e memórias:
Almir Mavignier e o Ateliê de Pintura de Engenho de Dentro

Lucia Reily, José Otávio Pompeu e Silva e colaboradores
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Capítulo 2
Arte e cultura nos anos 1940
Maria Heloísa C. Toledo Ferraz

Capítulo 3
Almir Mavignier e o Ateliê de Pintura de Engenho de Dentro
José Otávio Pompeu e Silva

Capítulo 5
Almir Mavignier: Um mestre-aprendiz
Ana Angélica Albano

Nos bastidores da pesquisa
Lucia Reily, Rosa Cristina Maria de Carvalho

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