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Marcas e memórias:
Almir Mavignier e o Ateliê de Pintura de Engenho de Dentro Lucia Reily, José Otávio Pompeu e Silva e colaboradores Capítulo 2
Arte e cultura nos anos 1940Maria Heloísa C. Toledo Ferraz
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Foram em entidades dessa natureza que os pacientes Adelina Gomes, Raphael Domingues, Fernando Diniz (do Centro Psiquiátrico Nacional), Arthur Bispo do Rosário (do Hospital Juliano Moreira), Aurora Cursino dos Santos, Farid Geber e Albino Brás (do Juquery), entre outros, descobriram na arte a possibilidade de expressar seus sentimentos e motivações.
O olhar da sociedade para a arte produzida em hospitais psiquiátricos foi se modificando lentamente durante o século 20. Antes invisível como a própria circunstância do doente mental, somente com as mudanças de paradigmas estéticos e científicos e ações de psiquiatras, artistas e intelectuais foi possível o entendimento da qualidade estética dos trabalhos produzidos nos hospitais. Almir Mavignier foi um dos artistas que teve oportunidade de participar dessa transformação e viver, no início de sua carreira artística, uma duplicidade de papéis – a de artista renovador de paradigmas de arte e pessoa atuante na consolidação de um modo de participação artística e cultural de pacientes psiquiátricos. Foram atuações como essas que conferiram aos anos 1940 e 1950 a referência de marco especial para a história da arte brasileira e a compreensão da arte dos doentes mentais. A arte e a cultura nos anos 1940 Na década de 1940, artistas e intelectuais brasileiros acompanhavam e discutiam as diretrizes estéticas inovadoras que chegavam do exterior e reposicionavam a arte, atribuindolhe novos significados (Figura 2.1). Nas principais revistas e jornais, autores brasileiros e estrangeiros publicavam suas crônicas, críticas e até manifestos de apoio ou rejeição às novas ideias. As produções culturais avançavam nos ambientes urbanos – os quais viviam um processo de crescente adensamento populacional. Foi o momento em que se viu modificarem-se os traçados urbanísticos e elevarem-se edifícios tornados marcos do modernismo em nosso país. Nesse cenário floresciam debates que definiriam os rumos da arte moderna e contemporânea. De um lado estavam os partidários do movimento modernista no Brasil, com sua luta pela aceitação e pela difusão de linguagens modernas. De outro, aqueles que defendiam a manutenção das tradições artísticas acadêmicas. A busca de uma nova mentalidade estava presente entre muitos artistas e intelectuais brasileiros e estrangeiros que viviam em nosso país. No dizer de Mário de Andrade: “a estabilização de uma consciência nacional”. Para alguns seria a conquista de temas brasileiros e inovações estéticas, “a conquista da terra pela imagem” (Navarra, 2007, p. 10), o reforço da brasilidade no homem trabalhador, como fez Portinari. Para outros, a ênfase nas linguagens artísticas, na pura visibilidade como ofereciam os adeptos do abstracionismo, do qual fizeram parte Almir Mavignier, Abraham Palatnik, Ivan Serpa e Mário Pedrosa. Além disso, havia ainda o quadro político e social de um país que acolhia artistas estrangeiros desde o período da guerra e um governo totalitário que propugnava um modelo nacionalista hegemônico. Entre os anos 1940 e 1950, o principal agente a promover a arte era o poder público, incentivando a criação de obras arquitetônicas modernas e também a produção de obras plásticas na capital federal, além de promover o contato com outras obras e artistas, e sua expansão. Vale lembrar que em 1940 foi criada uma Divisão Moderna no Salão Nacional de Belas Artes (SNBA), permitindo que obras e artistas fossem incluídos na rubrica “arte moderna”, mesmo que ainda se conservasse certa disparidade de interpretações do que seria a tal modernidade (Palhares, 2007, p.11). Os desdobramentos do modernismo coincidem com as mobilizações que atingiram vários campos – político, social, cultural, artístico e educacional. Para tanto, intelectuais conclamavam os artistas a se engajarem em ações e movimentos políticos como uma forma de renovação de valores estéticos e participação social. Em São Paulo, por exemplo, ficou evidente a confluência de propostas estéticas e ação política de alguns críticos e artistas que se mobilizaram para criar a galeria do Sindicato e o Clube dos Artistas e Amigos da Arte, mais conhecido por “Clubinho”. Neste, foram promovidas exposições e palestras memoráveis de Flávio de Carvalho, Oswald de Andrade, Osório Cesar e Tarsila do Amaral, versando sobre arte de vanguarda, arte dos loucos etc. Em várias capitais do Brasil formaram-se grupos que se reuniam para discutir arte e a situação política ou social do país e do mundo. Na opinião de vários autores, entre eles a crítica e historiadora de arte Aracy Amaral, no Rio de Janeiro haveria um movimento em prol da arte “social” desde 1935, quando foi criado o Club de Cultura Moderna. Este, além de congregar e organizar exposições e palestras, tinha ainda um meio para divulgar o ideário filosófico, social e cultural de seus membros, por intermédio do Movimento, Revista do Club de Cultura Moderna, cujo primeiro número incluiu uma conferência da doutora Nise da Silveira, intitulada “Filosofia e realidade social” (1). Contudo, foi necessário o aparecimento da guerra para que a união entre intelectuais, educadores e artistas se fortificasse em torno de ideais democráticos e humanistas. Em consequência, foi possível o aparecimento de manifestações de grupos mais engajados. Assim surgiram ações, as quais eram difundidas em reuniões onde se debatiam arte e sociedade ou arte e política e que resultaram, por exemplo, em um movimento antieixista no período da guerra. As reuniões ocorriam também em casas particulares, frequentadas por críticos como Mário Barata e artistas como a italiana Tiziana Bonazzola, que estivera ligada à Federação das Mulheres do Brasil, com posições nitidamente de esquerda (Morais, 1986). Mas, de todas as mobilizações, a que mais repercutiu no Brasil e no exterior foi a Exposição de Pintura Brasileira Moderna realizada em Londres, em apoio à Royal Air Force/RAF – talvez por ter concentrado artistas brasileiros e estrangeiros aqui residentes e pela abordagem “moderna”. O fato é que essa mostra organizada em 1944 reuniu perto de 150 obras entre pinturas, desenhos e gravuras dos mais renomados artistas, entre os quais figuravam Portinari, Flávio de Carvalho, Clóvis Graciano, Cícero Dias, Di Cavalcanti, Lívio Abramo, Axl Leskoschek, Oswaldo Goeldi, Tomás Santa Rosa, Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Djanira da Motta e Silva e Arpad Szenes. Dois anos depois, Arpad Szenes seria professor de Almir Mavignier no Rio de Janeiro, seguido por Axl Leskoschek. Ao mesmo tempo, a década de 1940 assistiria a outras movimentações – a da crítica de arte, que debatia as novas experiências de arte, a criação artística e as relações com a sociedade. Críticos das artes plásticas defendiam suas ideias em catálogos de exposições, na imprensa diária e em revistas culturais e científicas. Para Aracy Amaral (1987, p. 48), a importância das revistas culturais residiria no fato de poderem analisar, naquele momento, os eventos culturais “à luz das posições políticas, seja do produtor cultural, seja do público consumidor”. Dos críticos dessa época, Osório Cesar, Quirino da Silva, Tomás Santa Rosa, Geraldo Ferraz, Sérgio Milliet, Lourival Gomes Machado, Ruben Navarra e Mário Pedrosa, entre outros, mostravam-se atuantes, tanto nas abordagens teóricas e de crítica, como também em participação social. Muitas vezes os papéis que ocupavam eram ampliados e alguns chegaram à militância política. Em seu trabalho cotidiano, os críticos acompanhavam ainda a formação de grupos artísticos constituídos principalmente por trabalhadores e artistas de origem operária ou imigrantes. Eram artesãos, primitivistas, como José Antonio da Silva, por exemplo, e artistas que estudavam em ateliês de professores de pintura da época, como os de Anita Malfatti, Takaoka e Bonadei. Havia também outros grupos, como a Família Artística Paulista, o Grupo Santa Helena em São Paulo e o Núcleo Bernardelli no Rio. Gradativamente, os novos artistas ocupariam o espaço antes dominado pela elite acadêmica, mais informada, e pelos modernistas ilustres. Dentre os críticos de São Paulo, Osório Cesar2 teve outro papel relevante – abrir uma discussão sobre a arte dos doentes mentais. Esse momento da crítica de arte no Brasil produziu reflexões e polêmicas que se estenderam ao público em geral. Alguns dos críticos, como Osório Cesar, em São Paulo, e Ruben Navarra e Mário Pedrosa, no Rio de Janeiro, atuaram diretamente nos espaços dos jornais, onde procuraram atingir um maior número de pessoas. Com relação aos críticos que polarizaram os debates acerca dos movimentos modernos no Rio de Janeiro, quero destacar Ruben Navarra 3, pessoa com inúmeros contatos no meio literário e artístico. Amigo de Murilo Mendes e Manuel Bandeira, era, ademais, muito próximo do casal Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva, que também foi importante na vida de Almir Mavignier. Seus registros sobre arte percorreram toda a década de 1940. O ensaio Iniciação à pintura brasileira contemporânea, preparado para introduzir a exposição de Londres, é considerado uma síntese de seu pensamento teórico e estético sobre a arte moderna brasileira . Nessa proposição, Navarra tece um panorama da história da arte moderna no Brasil, o que nos dá a dimensão dos movimentos artísticos da época e reforça o poder dessa arte. É interessante a defesa que faz da liberdade de expressão: O direito de livre pesquisa estética – conforme bem observa Mário de Andrade, um dos corifeus do movimento – foi estabelecido como normal e natural, ao ponto que a nova geração fica até admirada em pensar que nem sempre foi assim (Navarra, 2007, p. 89). |
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Ruben Navarra era um crítico atento aos movimentos artísticos modernos e à vida cultural do Rio de Janeiro, mas uma das mais influentes vozes que marcou a crítica carioca e a história da arte brasileira foi sem dúvida Mário Pedrosa5, por sua envergadura e sua atualidade intelectual. Após formar-se em Direito, Pedrosa estudou também Filosofia, Sociologia e Estética em Berlim, na Alemanha. Nesse mesmo período tomou contato com o grupo surrealista na França.
Coerente e preocupado com os rumos da sociedade brasileira de seu tempo, Mário Pedrosa mostrava-se um intelectual de esquerda e também aberto às novas tendências artísticas. Acompanhava os movimentos de vanguarda, mas suas ideias políticas transpareciam nos escritos e nas palestras. Isso se nota desde seu primeiro ensaio-conferência sobre artes plásticas proferido no Clube dos Artistas Modernos em São Paulo (CAM), em 1933 . Com o golpe do Estado Novo, Pedrosa teve de exilar-se na Europa e nos Estados Unidos, retornando somente em 1945. Suas análises do objeto artístico e sua abordagem crítica ganharam novas roupagens, incluindo a preocupação com a feitura da obra e a estrutura formal. Redator de uma seção específica sobre artes plásticas no jornal Correio da Manhã, soube tratar dessas questões no âmbito da imprensa diária. O grande público do jornal podia acompanhar a crítica especializada, a qual incluiu a “arte virgem” dos “artistas” de Engenho de Dentro. Pedrosa era um defensor entusiasta da atualização artística e da ruptura com padrões acadêmicos e esperava poder atuar em prol das mudanças estéticas que ainda sofriam resistências do público em geral. A distância entre as cidades era um dos fatores que mais dificultava o contato entre as pessoas, afetando especialmente os jovens. Quando o assunto era arte e cultura, a maioria se mobilizava para acompanhar as novidades, e até mesmo os artistas plásticos que já participavam de ateliês em que se debatiam temas dessa ordem estavam ávidos pelas matérias na imprensa ou em revistas especializadas. Com as mudanças econômicas e os avanços tecnológicos ocorridos no Brasil, incluindo os meios de comunicação, artistas de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo expandiram suas experiências e estreitaram cada vez mais as relações. Antes relativamente isolados, pintores e escultores circulavam entre as metrópoles e promoviam intercâmbios e exposições individuais e coletivas. É preciso ressaltar que desde as primeiras décadas do século 20 havia inúmeros artistas buscando, por conta própria, meios para realizar essas integrações – como os pintores Antonio Parreiras, Henrique Bernardelli e Eliseu Visconti, que são alguns exemplos de artistas cariocas que realizaram exposições também em São Paulo. Nessa época, eram poucos os lugares da cidade em que os artistas paulistas e de fora podiam realizar exposições. Entre eles: “Casa das Arcadas [da Faculdade São Francisco – USP], Salão da Galeria São Jorge, Salão do Clube Comercial à rua de São Bento, Salão da rua Líbero Badaró 69, ou no Palácio das Indústrias para as coletivas” (Amaral, 1983, pp. 92-93). Quando queriam fazê-lo no Rio de Janeiro, precisavam procurar espaços como a Escola Nacional de Belas Artes, hotéis de renome e algumas galerias. Somente a partir dos anos 1930 é que houve a criação de locais próprios para mostras de arte, como a Galeria Heuberger, fundada no Rio de Janeiro em 1936, e uma galeria em São Paulo situada na esquina da rua Marconi com a Barão de Itapetininga, sobreloja da sede da “Casa e Jardim” (1938). Nesta, expuseram acadêmicos e artistas modernos das duas cidades como De Fiori, Aldo Bonadei, Di Cavalcanti, Orlando Teruz, entre outros. (Amaral, op cit., p. 100). A partir dos anos 1940 as exposições no panorama artístico paulista e carioca concentraram-se principalmente nos Salões Paulista de Belas Artes, Salões de Maio, no Salão Nacional de Belas Artes (SNBA) e no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), instituições de reconhecimento oficial, mas que permitiram a muitos artistas o aperfeiçoamento e a continuidade dos estudos. Graças ao prêmio de viagem patrocinado pelos Salões Paulista e Nacional, muitos artistas brasileiros, como José Pancetti e Maria Leontina, puderam viajar pelo país ou seguir para o exterior, principalmente a Europa. Almir Mavignier também teve sua oportunidade de ouro e soube aproveitar. Em 1949 candidatou-se a uma bolsa de estudos do governo francês(7) e, dois anos depois, com a aprovação, dirigiu-se a Paris, onde participou de vários salões de arte, visitou exposições de novas tendências e frequentou a Academia da Grande Chaumière. Essa viagem de estudos permitiu que se lançasse ao mundo artístico internacional e possibilitou que suas criações artísticas adquirissem um padrão mais consistente. Estendeu sua viagem a vários países da Europa e também aos Estados Unidos e tomou contato com jovens artistas na Suíça, na Alemanha, na França e na Itália. Depois das viagens culturais passou a residir em Ulm, na Alemanha, onde cursou a Escola Superior da Forma (Hochschule für Gestaltung) do departamento de comunicação visual e manteve seu próprio ateliê (1959-1971). A carreira de professor iniciada em Engenho de Dentro teve, assim, continuidade na Alemanha. A partir de 1965 passou a lecionar na Escola de Belas Artes de Hamburgo (Hochschule für Bildende Kuenste), cidade onde trabalha e viveu até 2018. |
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Mesmo fora do Brasil, Almir mantinha contato com os artistas brasileiros e também com a doutora Nise da Silveira, em Engenho de Dentro. Com isso pôde acompanhar os trabalhos do Centro Psiquiátrico Nacional e divulgá-los. Foi curador de várias exposições e auxiliou a doutora Nise em alguns momentos, como ocorreu em Zurique, na montagem de uma exposição dos artistas de Engenho de Dentro durante o II Congresso Mundial de Psiquiatria, realizado de 1 a 7 de setembro de 1957. A mostra de pinturas e desenhos elaborados por esquizofrênicos foi importante para a concretização do projeto do Ateliê de Artes Plásticas e marcou definitivamente a atuação de Nise nos campos da Psiquiatria e da Arte. Apresentada em cinco salas, por seu teor artístico e reconhecido valor, pretendia-se a transferência para o Kunstgewerbemuseum, também em Zurique (Figura 2.2) o que não se realizou; a mostra seguiu para Paris.
Mavignier conta que fora ideia sua a de ter uma sala somente com mandalas e outra com os desenhos de Raphael Domingues: “Eu montei uma sala de Zurique, de mandalas para Jung, que eu sabia iria inaugurar a exposição (...). Nise estudava com Jung” (Figura 2.3). Deslumbrado com as obras, o psiquiatra suíço Gustav Jung adiantou-se e assumiu o “papel de guia” da exposição, mas não sabemos se fora informado de que Almir era o responsável pelas orientações dos trabalhos e também pela organização dessa mostra. Nessa época, Mavignier executara uma série de pinturas, além de fotografias que constam de seu acervo pessoal, as quais são registros marcantes de seu trabalho e das primeiras exposições realizadas fora do Brasil. Uma dessas fotografias foi amplamente divulgada no meio científico, pois se refere à exposição dos artistas de Engenho de Dentro em Zurique e identifica o psiquiatra Jung diante das obras dos pacientes brasileiros. |
Formação e atuação profissional: Liberdade para criar
Almir Mavignier começou a atuar profissionalmente no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II quando estava com 21 anos, em 1946, motivado pela necessidade de um emprego fixo que o ajudasse a manter-se em seus estudos de pintura iniciados no ano anterior. O primeiro trabalho no Centro Psiquiátrico Pedro II foi como ajudante, “... [eu] era empregado para acalmar os loucos nas enfermarias” (Mavignier, 1989). Depois, foi encaminhado para o serviço de jardinagem. Nessa função, assim como na anterior, Almir pouco se envolveu, pois desconhecia totalmente esse campo de trabalho, mas como era jovem e mantinha ligações com artistas e arquitetos do Rio de Janeiro, entre eles, Burle Marx, conseguiu que este lhe desse algumas orientações para as tarefas que deveria cumprir (Figura 2.4). [Paulo Elejalde] “me incumbiu de reformar o jardim do hospital, naturalmente uma tarefa belíssima, com uma dificuldade – eu não entendia nada de jardim. Então procurei o Burle Marx e fiz uma entrevista com ele... como é que se faz jardim etc., para fazer os jardins.” (Mavignier, 1989). O momento mais importante para Almir foi quando conheceu a psiquiatra Nise da Silveira, que dirigia o Serviço de Praxiterapia daquele centro, mais tarde denominado Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR): Durante uma exposição de trabalhos manuais do serviço de praxiterapia, propus à sua diretora, Nise da Silveira, organizar um ateliê de pintura para os internados. A ideia veio de encontro a um antigo 10 projeto seu . Com esse depoimento, a criação de “um ateliê de pintura para os internados” teria partido do jovem artista e sido bem recebida pela doutora Nise da Silveira, que já antevia a possibilidade de trabalhos criativos de forma mais apropriada. A inauguração do ateliê deu-se em 9 de setembro de 1946 e Almir participou desde o início de sua abertura até novembro de 1951. Qualificado na época como monitor, ficou conhecido nessa função e ainda hoje é citado dessa maneira por alguns autores (Mello, 2000, p. 38). Mas, se naquele momento Mavignier aceitou tal designação, hoje se rebela, e afirma que era “terapeuta daquele serviço”11 e se considera também o “orientador do centro, o responsável pelo ateliê” (Mavignier, 2006). Em vários documentos, como em texto (Mavignier, 2000, p. 247) e entrevista recente (2005), ele diz que seu trabalho “era descobrir artistas (...), procurando-os nos pátios e nas enfermarias dos hospitais”. O pintor Mavignier pôde aproveitar suas experiências conduzindo os trabalhos com os internados que eram enviados ao ateliê. Organizava as atividades de pintura e modelagem, cuidando especialmente do uso de materiais e técnicas artísticas. As atividades variavam de acordo com o interesse e a capacidade de cada paciente (Figura 2.6). Havia aqueles que desenhavam, como Carlos Pertuis, e os que modelavam, como Adelina Gomes, ou pintavam, como Emygdio de Barros (Figura 2.5), mas “sem orientação teórica e sem conhecimento de obras de arte, para preservar a projeção direta de formas e símbolos do inconsciente” (Mavignier, 2009). A própria Nise da Silveira tinha preocupações dessa natureza e em desvelar um caminho de acesso ao mundo inconsciente. Ela jamais considerou arte o trabalho no ateliê: A linguagem plástica é uma forma de expressão. Eu não chamo de arte, nem de longe tal pretensão. Não garanto que sejam artísticos os trabalhos das pessoas que frequentam os ateliês. Não sou eu quem decide se é arte ou não. A função do trabalho não é artística, é expressiva (Pires Ferreira, 2008, p. 8). Em seu entendimento, a linguagem das imagens poderia ser mais eficaz do que a difícil comunicação verbal mantida entre o terapeuta e o paciente (12). |
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Quanto a Almir, no início haveria apenas uma busca de interessados em pintar, mas, posteriormente, a descoberta de pessoas talentosas entre tantos internos lhe deu novo ânimo:
O ateliê começou a funcionar em 1946, sob minha orientação, e lá trabalhei até 1951. (...) A tarefa inicial do ateliê consistiu em descobrir interessados em trabalhar com pintura, buscando-os nas enfermarias e nos pátios dos hospitais, entre centenas de internados. Deve-se apenas ao acaso a revelação de personalidades como Arthur Amora, Emygdio de Barros, Fernando Diniz, Raphael Domingues, Adelina Gomes, Isaac Liberato e Carlos Pertuis. Porém, o que mais nos impressionava não era o acaso que nos permitiu descobri-los, mas o acaso a encobrir outras personalidades, que permaneceram desconhecidas. Essa frustração aumentava a obsessão da procura. Os internados trabalhavam regularmente, o que contribuía para seu crescente domínio da técnica pictórica (...) (Mavignier, 2009). O local do ateliê foi uma escolha do diretor do Centro Psiquiátrico Nacional, o doutor Paulo Elejalde, e ocupava um andar inteiro de um prédio no complexo hospitalar (Mavignier, 2005). Era uma sala espaçosa ligada por um corredor a outras um pouco menores, onde ficava o gabinete da diretora, doutora Nise, e o da assistente social. Além da sala maior onde estavam todos os internos, havia também uma pequena sala onde Almir podia realizar seus próprios trabalhos tranquilamente. Mas, nesse período inicial, com Almir conduzindo os trabalhos, o ambiente de criação não se restringia apenas às quatro paredes dedicadas para isso. Alguns pacientes extrapolaram esse espaço, apoiados por Almir, que vislumbrava suas necessidades criadoras. Emygdio pintava algumas vezes no próprio ateliê de Almir, pois não se sentia tranquilo na balbúrdia do espaço conjunto. Após receber alta, Emygdio continuou a pintar, incentivado por Mavignier que lhe levava tintas e papéis, e até o hospedou em sua casa em certo momento. Estimulados por ele, alguns pacientes eram conduzidos a trabalhar fora do ateliê, onde podiam sentir melhor o ambiente, o que os ajudaria em suas expressões. Adelina e Emygdio saíam algumas vezes, assim como outros pacientes. Raphael era um caso à parte, pois teria também recebido alta e continuava desenhando em sua própria casa. Para não perder o entusiasmo, Almir conta em depoimento que mantinha contatos constantes, não deixando faltar material e visitando-o junto com Mário Pedrosa, Ivan Serpa e até o poeta Murilo Mendes (Mavignier in Filipp, 2006). O exemplo mais nítido dessa intenção de tratar o ensino com motivações e liberdade e saber reconhecer a capacidade ou as intenções de cada um dos artistas fica bem evidente com o relato de Mavignier sobre Arthur Amora . Esse paciente queria participar do grupo, mas afirmava não saber pintar ou desenhar. Almir procurou deixá-lo livre, o que o levou a experimentar e dedicar-se às formas geométricas. O seu trabalho restaram poucas pinturas e desenhos, mas eles se caracterizam pela originalidade de uma obra abstrato-concreta. Se comparamos os seus trabalhos com os dos pintores concretos no Brasil na mesma época de 1950/51, sobressaltam as obras de Arthur como pintura concreta de impressionante consequência e rigor e de fascinante contraste ótico através do branco e preto, cores típicas da pintura “op-art”. A originalidade formal dos quadros de Arthur permaneceu até hoje14. Nessa época, Almir morava em Vila Isabel e já era um jovem inquieto, que não se contentava com os ensinamentos acadêmicos de arte, ainda predominantes entre os cursos tradicionais. A carreira artística fora uma escolha pessoal e a de professor, uma consequência. “No ginásio eu era assistente do professor de desenho. No ginásio Vera Cruz eu assistia o professor, quer dizer, (...) quando ele não podia dar aula eu [dava] no seu lugar” (Mavignier, 2006). Após o ensino secundário, tentou ingressar na Faculdade Nacional de Arquitetura do Rio de Janeiro. Não tendo conseguido, procurou o caminho da arte fazendo um curso de desenho na Associação Brasileira de Desenho, onde conheceu Ivan Serpa. Ainda que iniciante, Almir sentia necessidade de novos impulsos. Isso o motivou a procurar orientação entre as pessoas ligadas ao meio artístico. Por intermédio de amigos, aproximou-se de um grupo de artistas modernos. Almir conta que a indicação de um professor entre os artistas mais renomados do Rio de Janeiro deu-se por intermédio do frade beneditino D. Gerardo, que o apresentou ao pintor húngaro Arpad Szenes15 e à esposa, a artista plástica portuguesa Maria Helena Vieira da Silva, durante uma exposição no Ministério de Educação e Saúde. |
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Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva (Figuras 2.8; 2.11) eram respeitados e admirados por artistas e intelectuais brasileiros e estrangeiros, alguns dos quais representantes da vanguarda artística. O casal chegou ao Brasil em 1940, deixando a Europa, onde ocorria o crescimento do fascismo. Assim como eles, outros pintores e gravadores estrangeiros também vieram ao Brasil no período da guerra e foram morar em Santa Teresa. Arpad trabalhou nesse período produzindo retratos e ilustrações de livros, entre os quais obras de Murilo Mendes, Cecília Meireles, Mário de Andrade e Jorge Lima.
O acolhimento no Brasil ajudou o casal a integrar-se, embora Maria Helena tenha tido dificuldades para adaptar-se ao clima e à ausência de amigos que havia deixado na Europa. Arpad conseguiu realizar sua primeira exposição no Rio de Janeiro um ano após a chegada ao país, na Sala dos Arquitetos, e Maria Helena Vieira da Silva, no ano seguinte, no Museu de Belas Artes. Nos anos que se seguiram, participaram de outras exposições, tanto no Rio como em Belo Horizonte. Parece que o primeiro contato com o casal deixou fortes lembranças em Mavignier. Ele sempre retorna a esse momento para dizer que Maria Helena foi quem intercedeu para que Arpad o recebesse. Eu não podia pagar nada. Então ele me disse que fosse ao Hotel Internacional, que ele queria me conhecer melhor (...) [mas foi] através da Maria Helena Vieira da Silva, [que] convenceu o marido dela, Arpad Szenes, a ser meu professor” (Mavignier, 2006). Mavignier conta que o ingresso no ateliê de Arpad Szenes se deu em 1946 (Figuras 2.9; 2.11). Atento às orientações de seu professor, iniciou nesse período a pintura a óleo. Segundo Mário Pedrosa (1950), o primeiro quadro foi Estudo de composição. “E é mesmo o que o título indica, mas onde se nota também, nos panos da figura, uma preocupação com a matéria e de cor bem pronunciada”. Como aluno de Arpad, Mavignier dedicou-se à pintura e à exploração da cor. Fez vários retratos e entre eles ressalta o retrato do próprio professor (1947), obra que se encontra na coleção de Gilberto Chateaubriand (Villas Bôas, 2008, p. 212) e foi considerada impressionista por Mário Pedrosa (1950) e “... de liberdade quase irreverente diante do mestre e seus ensinamentos” (Figura 2.13). O ateliê de Arpad Szenes ficava no subsolo do Hotel Internacional, um casarão situado no morro de Santa Teresa, no Silvestre, descrito por muitos como um hotel em ruínas, mas com uma visão paradisíaca. De sua varanda era possível avistar a baía de Guanabara, a Lagoa e o Pão de Açúcar ao fundo. (...) ao lado da pensão, ligado por um jardim meio mato e árvores imensas, lindíssimas. O hotel era praticamente uma ruína. Vazio, muito grande, amarelo. Condenado por ser perigoso. Depois de uma escada esburacada se chegava ao atelier: que belas pinturas vi neste atelier. Lembro-me de Arpad dizendo: “É preciso de muito tempo para a pintura. E tempo para ficar olhando e pensando no que se fez” . Construído nos primeiros anos do século 20, o hotel foi o preferido dos estrangeiros que visitavam o Brasil. Nele também se hospedaram grupos de teatro e dança e, durante a guerra, intelectuais e refugiados. Entre muitos, estavam o casal Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva, os artistas plásticos Wilhelm Woeller e Henrique Boese. Além dos europeus, alguns americanos também optaram nessa época pelo Brasil (Polly McDonell e o pianista Milton Goldring), assim como os japoneses Kaminagai e Fukushima, o pai de Flávio-Shiró. Quando o hotel foi desativado, aproveitaram as casas e chalés que o circundavam e formouse um conjunto que deu origem à Pensão Internacional. Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva moravam no quarto central de uma das casas, onde ela fez também seu ateliê. O crítico Ruben Navarra vivia em um quarto de uma casa menor e Carlos Scliar, em um chalé. Todos os quartos eram ocupados por artistas, cientistas ou intelectuais. Nos finais de semana recebiam convidados, que não faltavam aos encontros. Nas palavras do ensaísta Frederico Morais (1986), o hotel e o bairro formavam uma comunidade: Havia uma sensibilidade e uma inteligência no bairro. (...) Respirava-se música e poesia nas conversas ou durante as refeições, falava-se de arte e literatura, as discussões eram acaloradas. Distantes da Europa em guerra esses artistas criaram em Santa Teresa uma comunidade à europeia – culta, sensível, inteligente (Morais, 1986, s/p). De modo geral, o clima das reuniões no Hotel extravasava para todos os locais. Respirava-se arte, como dizia Ruben Navarra. Maria Helena Vieira da Silva viveu essa época de maneira muito especial: Vivíamos assim, como uma borboleta. Como disse, tínhamos pouco dinheiro, mas, ao mesmo tempo, tínhamos em Santa Teresa um bondezinho que passava constantemente e que nunca vinha cheio. E era baratinho. Vivíamos na penção (16) O convívio com os artistas abrangia o ateliê de Arpad e seus alunos. O ambiente ali era contagiante e bem distinto daquele conhecido na Academia. Os alunos tinham liberdade para pintar o que quisessem e não havia influência do professor. Nessa época, além de Almir, estudavam com Arpad: Polly McDonell, Frank Schaeffer, Eduardo de Moraes Rego e Germano Vidal. Após a volta de Arpad a Paris, também estudaram com ele Lygia Clark e Teresa Nicolao são de uma forma quase coletiva. Segundo Frederico Morais (1986), aparentemente Arpad não teria um método definido em seu ensino de arte. Mas muitos dos antigos alunos e amigos falaram de suas qualidades humanas e educação. Outros faziam referência ao casal como pessoas especiais. Entre eles, Schaeffer fez um comentário que pode nos ajudar a entender o processo de orientação artística de Arpad, conduzindo a percepção sensível: “a insistência dele na questão da sensibilidade é sua preocupação com a cor” (Morais, 1986, s/p). Para Almir Mavignier, haveria um clima de liberdade e pesquisa: “Os alunos estavam lá estudando, um ao lado do outro e fazendo o que eles queriam” (Mavignier, 2006). A liberdade artística vivenciada na formação de Almir com Arpad Szenes sem dúvida influiu em sua carreira e talvez tenha sido o ponto de encontro com os pacientes de Engenho de Dentro e de seus experimentos abstratos (Figuras 2.12; 2.13; 2.14). Segundo Mavignier, um ano após ter iniciado seus estudos, ele pôde participar da exposição coletiva dos alunos de Arpad no Instituto dos Arquitetos do Brasil. Ainda como integrante do ateliê de Arpad Szenes, um dos quadros pintados por ele recebeu medalha de bronze no Salão de Belas Artes, do qual também participou em mostra coletiva. Fazia parte do júri desse Salão o arquiteto Lúcio Costa, que o apresentou ao crítico Tomás Santa Rosa, o qual fez um artigo elogioso sobre o jovem e promissor artista (Mavignier, 2006). |
Após o retorno de Arpad para a França (1947), Mavignier continuou a estudar pintura com o gravador austríaco Axl Leskoschek, o que perduraria até 1948, quando esse artista também voltou para seu país. Desse período em diante estudou com Henrique Boese18, em seu ateliê da rua Aprazível. Na opinião de Mário Pedrosa (1950), Leskoschek seria um seguidor das pesquisas pós-impressionistas, o que o tornaria um mestre mais atento à forma, ao movimento e às modulações cromáticas.
Para o artista jovem, conviver com os movimentos e artistas modernos foi essencial na sua busca de uma linguagem própria, que evoluiu para as experimentações. Almir Mavignier e seu compromisso com a arte No período do pós-guerra aparecem novidades no campo artístico e cultural. Embora muitos artistas estrangeiros tenham retornado a seus países de origem, outros ficaram entre nós e constituíram novos grupos, em vários estados brasileiros. Mas o salto de qualidade, que favoreceu interações com o meio artístico e cultural do país e de várias partes do mundo, deu-se com a criação dos museus de arte em São Paulo e no Rio de Janeiro, locais que receberam exposições inclusive dos artistas de Engenho de Dentro e do Juquery. Antes, entre os paulistas, um espaço especialmente dedicado à arte contemporânea era a Galeria Domus, inaugurada em 1946. Somente em 1947 é fundado o Museu de Arte de São Paulo (MASP) e, no ano seguinte, surge o Museu de Arte Moderna (MAM). O primeiro pelas mãos do jornalista Assis Chateaubriand e dirigido pelo crítico italiano Pietro Maria Bardi, e o segundo por Francisco Matarazzo Sobrinho. Em 1948 o Rio de Janeiro também assiste à inauguração de seu Museu de Arte Moderna. Com o surgimento das instituições, ampliou-se o circuito das artes. Intelectuais e artistas que circulavam em outros países vêm ao Brasil para participar de debates sobre arte e temas culturais. Entre eles, vieram para São Paulo, além de Lina Bo Bardi, esposa de Pietro Maria Bardi, Roberto Sambonet, Gastone Novelli e Leopold Haar, que trouxeram suas experiências europeias no campo da arquitetura e de “outros espaços pouco explorados pelos paulistas, como o desenho de móveis, a produção de cartazes, a diagramação de revistas e jornais, o projeto de estandes, a produção de vitrines etc.” (Haag, 2009, p. 85). Os debates realizados nos museus versavam sobre a formação do gosto pela arte, mais especialmente pela arte moderna, pelas novas tendências contemporâneas em artes plásticas e pelos próprios museus. É preciso lembrar que nos anos 40 e subsequentes houve inúmeras reuniões e saraus artísticos no meio intelectual, científico, e também entre a burguesia, estimulados por pessoas envolvidas na área cultural, como o jornalista Assis Chateaubriand. Foram encontros em que se conheciam e eram divulgados os artistas, tanto brasileiros como estrangeiros, e suas obras. Com isso, houve maior abertura e interesse de intelectuais, artistas e cientistas pela arte em geral e por colecionar obras artísticas de vá rias naturezas, inclusive desenhos de crianças e de “loucos”. Em São Paulo, Osório Cesar fez numerosas conferências sobre a arte dos “loucos”, divulgando desenhos e pinturas de pacientes asilados que colecionava desde a década de 1930. A maioria dos trabalhos era composta por desenhos em grafite e lápis de cor, executados em papéis de vários tipos, os quais mostravam figurações e multiplicidade de formas, construídas com emoção. O que se tornava novidade era a comparação que Osório Cesar fazia entre a arte desses pacientes e a arte modernista e de vanguarda. No Rio de Janeiro não foi diferente. Artistas com visões mais arrojadas reuniam-se com pessoas de formação variada, entre as quais arquitetos, principalmente os de tendências modernistas. Formaram grupos com os quais partilhavam ideias e projetos e tiveram entre seus parceiros os arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, o paisagista Burle Marx19 e a gravadora Fayga Ostrower. Desses encontros saíram muitos projetos em comum e resultaram em obras importantes. Nenhum outro intelectual, entretanto, soube reunir pessoas a seu redor tão bem quanto o crítico de arte e militante político Mário Pedrosa. Artistas, poetas e intelectuais frequentavam seu apartamento na rua Visconde de Pirajá, onde debatiam arte e política. Almir Mavignier foi um dos artistas que esteve a seu lado naquele momento e pôde conhecer de perto a extensão de seu pensamento. O encontro inicial de Almir Mavignier com Mário Pedrosa deu-se em fevereiro de 1947, no espaço de uma exposição dos trabalhos dos artistas do Centro Psiquiátrico Nacional. Foi a primeira exposição realizada fora dos muros do hospital, na galeria do Ministério da Educação, a qual teve grande repercussão na imprensa, incluindo comentários do próprio Pedrosa crônicas publicadas no Correio da Manhã, ele analisa a singularidade das pinturas expostas pelo Centro Psiquiátrico Nacional e de seus criadores, e chama nossa atenção o fato de usar em uma delas a denominação “arte inconsciente”. Posteriormente, em 1949, ele manteve um debate com o crítico Campofiorito, também pela imprensa, em defesa dos artistas de Engenho de Dentro. Como artista e orientador artístico dos pacientes, Almir Mavignier acompanhava de perto a recepção do público que acorria às visitações dos trabalhos, que constavam de pinturas e desenhos (de crianças e adultos) e trabalhos manuais femininos. Para Almir, a reação das pessoas e seus comentários diziam muito. As pinturas e desenhos dos pacientes haviam saído do hospital para ingressar no ambiente cultural do Rio de Janeiro. Portanto, a forma como se deu o encontro entre o artista e o crítico Mário Pedrosa foi o que os aproximou: “vi aquele homem ajoelhado diante dos desenhos do Emygdio e do Rapahel (...). E aquele homem ajoelhado era o público” (Mavignier, 2006). A partir dessa exposição os encontros se sucederam. Pedrosa visitou Engenho de Dentro inúmeras vezes e manifestou sua impressão em artigos, ensaios e conferências. Desde a primeira visita, soube apoiar as obras de Nise da Silveira, embora não compartilhassem os mesmos pensamentos filosóficos e políticos. Estudioso e culto, percebia a importância da arte na vida das pessoas e a entendia como “um fator de recuperação para os doentes”. Assim como Osório Cesar, em São Paulo, Pedrosa considerava a criação artística uma capacidade comum a todos os seres humanos, incorporando, portanto, a arte dos doentes mentais. Para ele, haveria uma aproximação entre arte primitiva e arte moderna oriunda das descobertas da primeira por parte da civilização europeia e dos experimentos da arte moderna pela cultura ocidental (Figura 2.15). |
A importância do crítico para a legitimação da arte dos doentes mentais do Centro Psiquiátrico Nacional de Engenho de Dentro e de outras modalidades artísticas, tais como a arte das crianças, não foi apenas circunstancial. No decorrer de sua vida ele abordou assuntos diversos, desde a história da arte, a sociologia da arte até a educação artística. Grande parte de seu trabalho e estudo foi dedicada a promover conhecimentos, o que fica bem claro nas palavras do amigo e poeta Ferreira Gullar (2000):
Tornamo-nos amigos. Em suas conversas e nos livros que me emprestou, fui formando a base de meu conhecimento da arte contemporânea. Ensinou-se como ver um quadro, como perceber-lhe as qualidades, mas, sobretudo, ampliou minha visão da arte para nela incluir não apenas as inovações da vanguarda, como também a “arte virgem” de Emygdio, Raphael, Diniz, grandes artistas revelados nos ateliês do Centro Psiquiátrico Nacional do Engenho de Dentro, e a arte das crianças, a que ele dedicava atenção nas visitas que fazia ao curso ministrado por Ivan Serpa. Na interpretação de Almir Mavignier, a personalidade culta de Mário Pedrosa foi um dos fatores que influenciou sua pintura e seus conhecimentos nesse período: (...) a tese de Pedrosa “a influência da teoria da gestalt sobre a obra de arte” me informou que o conteúdo de uma forma não se encontra na sua associação com formas da natureza, ele se encontra no caráter próprio da forma. Esse conhecimento me permitiu abandonar uma pintura naturalista e iniciar uma pintura de pesquisas concretas de formas livres de associações. Ivan Serpa e Abraham Palatnik foram igualmente influenciados por esse trabalho de Mário Pedrosa, que praticamente produziu o primeiro grupo de pintores abstrato-concreto do Rio de Janeiro, talvez do Brasil. |
A arte abstrato-geométrica desenvolvida pelo grupo foi uma das vertentes que rompeu o figurativismo naquela ocasião. Para Aracy Amaral, o abstracionismo ingressava em nosso país por intermédio de duas importantes exposições: uma no Salão do Ministério de Educação e Saúde, no Rio, de Alexander Calder (1948) e outra em São Paulo, no Museu de Arte de São Paulo (1950), que apresentava a “Unidade Tripartida” de Max Bill (22). No ano seguinte a I Bienal Internacional de São Paulo reforçou as tendências presentes nessas exposições, que traziam feições particulares do abstracionismo. Tais tendências expandiam-se nos Estados Unidos e na Europa, por isso atraíram inúmeros visitantes brasileiros, principalmente os artistas jovens como Almir Mavignier, Mary Vieira, Palatnik, e críticos como Mário Pedrosa, entre outros (Figura 2.16). A mostra de Alexander Calder, no Rio, era marcada por construções impulsionadas pelo movimento e apresentava uma proposta totalmente inovadora em nosso meio, o “relacionamento ambiental”, e a de São Paulo, de Max Bill, estava desenvolvida segundo as tendências da arte construtiva europeia. Para Aracy Amaral, seriam os prenúncios do neoconcretismo no Rio e concretismo em São Paulo, pois os primeiros grupos de artistas abstratos brasileiros se organizaram logo após, nos anos 1950, e foram se afirmando nas décadas seguintes.
Max Bill foi o ponto de partida de artistas brasileiros e argentinos na formação do movimento concretista. A I Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, representou o reconhecimento das experiências artísticas do grupo abstrato-geométrico. Além do escultor suíço Max Bill, que recebeu o maior prêmio de escultura, os artistas brasileiros de tendência objetiva, como Almir Mavignier, Ivan Serpa e Abraham Palatnik, puderam expor seus trabalhos e até receberem uma premiação (Serpa recebe o prêmio de jovem artista). Mário Pedrosa argumentava a favor da autonomia da arte, representada pela arte abstrata em oposição à arte realista, figurativa, que dizia ser própria das sociedades burguesas e reacionárias. Trazia ainda importantes reflexões acerca do caráter intrínseco da obra e das relações que se processavam em seu interior. Defendia a intuição e a liberdade artística. Com o seu apoio, os jovens artistas Almir Mavignier, Ivan Serpa e Abraham Palatnik amadureceram suas experimentações e marcaram sua agremiação como o primeiro núcleo de arte concreta no Rio de Janeiro. A partir de 1949, o “Grupo Forma” ganhou mais força e pôde produzir as primeiras obras de pintura “concreta”, ou seja, não naturalista e constituída de formas e cores puras. As ideias de Pedrosa sobre autonomia da linguagem plástica e valorização de processos inventivos que poderiam intervir na obra de arte coincidiam com as pesquisas e atuações do grupo. Almir Mavignier conduzia seus trabalhos em busca de novas criações e compartilhava com companheiros suas experiências de Engenho de Dentro. Ivan Serpa, por seu lado, orientava um curso de desenho para crianças, concomitantemente às reuniões com seus amigos. O percurso do artista Almir Mavignier, contudo, estava apenas começando. Ele sempre soube da importância de suas pinturas dessa época, assim como de seu papel de orientador artístico em Engenho de Dentro em 1946: “... e esses trabalhos me fizeram professor na Escola de Belas Artes [de Hamburgo]” (Mavignier, 2006). O artista e professor de hoje liga-se ao passado, alimentando-se da paixão e do entusiasmo da juventude e da espontaneidade criadora dos artistas de Engenho de Dentro. Um primeiro contato com a vida e a obra do artista Almir Mavignier pode nos trazer nuanças de suas várias fases e focos de interesse. No entanto, é preciso conhecê-lo mais profundamente para perceber também seu engajamento social, que se faz notar pelas preocupações com a sua arte e a dos artistas de Engenho de Dentro, lutando para preservar direitos e cidadania cultural. Ainda hoje, Almir demonstra absoluta disponibilidade para proteger as obras de seus antigos alunos – não como um mestre zeloso de seus aprendizes, mas como uma pessoa que reconhece a importância das obras artísticas como parte da cultura brasileira e mundial. |
Notas
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